Invisível

"Não roube a minha solidão sem antes me oferecer a verdadeira companhia". Foi Nietzsche quem pronunciou essas palavras... Logo você, Nietzsche? Que precisou de enorme dose de coragem para desbravar sozinho os longínquos territórios do pensamento para além de todo bem e todo mal! Que mostrou genealogicamente as origens absurdas e as arbitrariedades de todos os nossos frágeis sentimentos morais. Que doou sua própria vida em prol da hercúlea missão de desatar os grilhões dessas grossas correntes que nos prendem a esse jogo de palavras absurdo, ceifador de toda vida que deseja se manifestar no esplendor de sua vontade de potência. Essa sua frase me soa como um enigma a ser decifrado. O que significa essa "verdadeira companhia" da qual você fala? Ela realmente existe? Ou será que não passa de mais uma projeção fantasiosa que criamos para não termos que encarar a dura verdade de que cada homem só pode salvar a si mesmo? Aonde está essa "verdadeira companhia"? A referência está fora ou dentro? Se refere a uma pessoa fora de nós que um dia será capaz de realmente nos enxergar?  Ou diz respeito à projeção que fazemos de que alguém fora de nós um dia nos enxergará de verdade? Verdade, mentira... Isso realmente existe? Ou esses conceitos não passam de mais uma armadilha da linguagem? Para Lacan somos seres divididos por sermos seres de linguagem. Sem a linguagem não existiria a mentira e tudo seria apenas percepção direta dos fenômenos regidos pelas leis da natureza. A linguagem cria no homem a ilusão de que ele de fato chega a criar coisas novas. Juntamos uns fonemas, criamos palavras, embutimos significados imprecisos a essas junções de sílabas e sons, formamos frases que levam a certos sentimentos e assim nos iludimos coletivamente nessa construção afobada pela pressa de ser visto enquanto o tempo segue seu próprio movimento impessoal, sem se importar muito com a nossa finitude, nossos medos, nossas vontades e necessidades básicas. "Ser é ser percebido." Essa frase foi proferida por Berkeley, o pai do imaterialismo, que num surto de lucidez espantosa ousou contestar a própria existência do mundo material. Posto isso, pergunto: Quem nos percebe na nossa solidão? Existe um lado em nós capaz de nos perceber mesmo quando nos sentimos invisíveis? Se a divisão do ser se dá pela necessidade de adequação do indivíduo às regras da linguagem e se ser é ser percebido, sou levado a questionar: como um ser fragmentado e sozinho pode ser qualquer coisa? Será que um pedaço desse ser que não é pode percebê-lo a fim de possibilitar que ele possa vir a ser? Quando escrevo sinto que delego a função de encontrar as palavras a esse lado em mim que me percebe e que me permite ser para além do mero existir. Uso as palavras num gesto de desobediência. Acredito que foram elas que me fragmentaram em primeiro lugar. Mas pela ambivalência da vida sinto que são elas o meu melhor recurso para reparar os pedaços quebrados dentro de mim rumo a esse incansável processo de tentativa de integração do ser. Quando escrevo me sinto percebido por mim mesmo. Talvez essa frase do Nietzsche seja um diálogo interno entre os diferentes lados dentro de cada um de nós. Que meu lado condicionado pela invasão do mundo aos meus sentidos nunca mais me roube de mim mesmo. Que me percebendo eu possa preencher o vazio deixado pelo vácuo que a vida colocou no lugar das minhas ilusões quebradas. 

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