Novo Aeon

       Hoje senti vontade de resenhar sobre essa magistral obra filosófica do maior de todos os filósofos na percepção desse que vos escreve: Raul Seixas!
       Confesso que sempre que alguém fala de forma irônica sobre Raul, o chamando de "doidão" e rindo, isso me dói no fundo da alma. Raul é um gênio do pensamento filosófico, mas não só isso, é também roqueiro, poeta, músico, anarquista, ateu, libertário, questionador, pensador e  muito mais. E aqui digo "é" no presente, pois a atemporalidade da obra de Raul Seixas mantém suas ideias vivas. Os discos que ele lançou nos anos 70 estão mais atuais do que nunca. Raul veio ao mundo, viveu intensamente e foi embora. Mas deixou uma obra que nunca morrerá. A obra de Raulzito tem esse poder. Toca do caminhoneiro do Brasil profundo à dona de casa nos pegue-pagues do mundo, ao Professor universitário, cientista e roqueiro que vos escreve. Comecei a ouvir Raul aos 15 anos de idade e desde então Raul me acompanha. Raul é uma das minhas maiores referências no quesito "formação de pensamento" e "postura" perante à vida. E hoje vou falar sobre um dos meus discos preferidos: "Novo Aeon"!


        Escolhi "Novo Aeon" por enxergar uma unidade de pensamento filosófico tão bem embasada ao longo de suas letras que para mim esse álbum pode ser chamado de "conceitual". Existe um claro conceito nas letras das canções de "Novo Aeon", uma unicidade que dá liga às ideias que vão sendo jogadas pouco à pouco para o ouvinte atento. Digo que escutar um disco do Raul é mais do que ouvir uma obra de rock, é quase como ler um livro de filosofia. Tem que prestar atenção. Não é som ambiente, não é música de doidão-piadista, não é música para fazer gracinha em festa de família, não é música para tocar em danceteria. É música para ouvir, prestar atenção, aprender, amadurecer, evoluir, entender, perceber, formular, libertar. 

Sem mais delongas, vamos ao disco.

       O ano é 1975 e a música que abre o disco é "Tente outra vez". Muitas vezes essa linda canção é tristemente colocada em PPTs com mensagens cristãs positivas trocadas em grupos de whatsapp de família. É uma pena não terem prestado atenção em "Gita", lançada em 1974. E nem em "Paranóia" (do mesmo "Novo Aeon"). Raul sempre lançou a ideia de que "não existe Deus, senão o homem". Em "Gita" falou em alto e bom som sobre a insensatez de se buscar esse homem místico que no fundo nada mais é do que a experiência de viver. "Porque você me pergunta? Perguntas não vão lhe mostrar que eu sou feito da terra, do fogo, da água e do ar..." Deus na concepção de Raul era o mesmo do poema de Spinoza.

"Pára de ficar rezando e batendo o peito! O que eu quero que faças é que saias pelo mundo e desfrutes de tua vida." 
Baruch Spinoza (escrito entre 1632-1677).

         "Tente outra vez" não é uma música cristã de auto-ajuda. Quando Raul fala "tenha fé em Deus, tenha fé na vida" não se refere ao deus monoteísta judaico-cristão. Se refere ao "Deus HOMEM". É um grito de guerra em prol da valorização do indivíduo. Vamos homem, levante sua mão sedenta e recomece a andar! Tente! Não diga que a vitória está perdida! Vamos lá! É uma convocação à essa guerra em prol do indivíduo. "Novo Aeon" é um disco que se inicia com um grito de guerra! 
        O conceito do álbum: destruir as instituições mais sagradas para o Brasileiro médio de 1975: o Estado e a Igreja. E fazer isso defendendo a revolução do indivíduo. Em suma: é um manifesto ateu-libertário escrito no auge da ditadura militar do Brasil. E o mais surreal é que o Brasil inteiro acolheu a obra de Raul. Das donas de casa aos taxistas, caminhoneiros, estudantes, professores, etc. Quando perguntado em 1973 como definia sua música, Raul respondeu:

"Minha música é vendável, consumível, para ser entendida por todo mundo. Não adianta dizer as coisas para grupos pequenos, fechados. Minha música entra em todas as estruturas."
Raul Seixas (em entrevista à revista Pop em 1973)

         E após proclamar na primeira música: "tenha fé em Deus, tenha fé na vida", Raul emenda com "Rock do Diabo!". Um maravilhoso rock'n roll enaltecendo o arqui-inimigo de todas as religiões monoteístas e seu binarismo simplista da luta do "bem contra o mal". No fundo "Rock do Diabo" é uma música que zomba da rasa estrutura de pensamento filosófica da teologia judaico-cristã. E o faz de um jeito provocador, cômico, cínico, irônico, quase que rindo dos neopentecostais em sua insana luta contra os encostos do mundo.   
          Em seguida, Raul começa a questionar a própria instituição do casamento na linda música sobre poligamia: "A maçã". Raul, como grande poeta que o "é" diz: "Se eu te amo e tu me amas, e outro vem quando tu chamas, como poderei te condenar? Infinita é a tua beleza. Como podes ficar presa que nem santa no altar?" E após esse sopro de boa filosofia na forma de poesia emenda mais um trecho arrebatador: "Amor só dura em liberdade, o ciúme é só vaidade. Sofro, mas eu vou te libertar. O que que eu quero se eu te privo do que eu mais venero, que é a beleza de deitar?" Essa canção mostra o lado poético de Raul e revela uma sensibilidade que poucas pessoas possuem, além de uma inegável coragem em assumir suas fraquezas com postura compatível com a ideia de uma guerra ao status-quo: "Sofro, mas eu vou te libertar!"          
           Após enaltecer o indivíduo e questionar a lógica da monogamia, Raul lança mais um hino em prol do indivíduo: "Eu sou egoísta". Nessa música Raul se apresenta como libertário que é: "Eu sou estrela no abismo do espaço, o que eu quero é o que eu penso e o que eu faço. Onde eu to não há bicho papão (em outra versão a expressão "bicho papão" foi substituída por "sombra de Deus"). Eu vou! Sempre avante no nada infinito, flamejando meu rock, meu grito. MINHA ESPADA É A GUITARRA NA MÃO!!!" Essa música segue a mesma linha ideológica que "Tente outra vez", mas narrando a perspectiva do "sentir libertário" pelo alter-ego roqueiro-anarquista de Raul.
          A música seguinte "Caminhos" apresenta a simples ideia que inviabiliza toda utopia estatista coletivista, todos os conhecidos "ismos" de quem ainda prefere discutir política em detrimento de filosofia: "E você ainda me pergunta aonde eu quero chegar, se há tantos caminhos na vida e pouquíssima esperança no ar. E até a gaivota que voa já tem o seu caminho no ar..." E essa curta canção termina com a simples frase que nos remete à finitude da vida: "o caminho da vida é a morte."
          Em seguida temos "Tu és o MDC da minha vida". Uma música com um incrível arranjo, cheio de variações de clima numa dinâmica que adiciona cômica dramaticidade a essa bela canção. "Tu és o MDC da minha vida" é uma música visceral, uma linda música de amor, mas não no sentido do amor romântico. É uma tragicomédia sobre o fim de um relacionamento monogâmico convencional. É uma canção propositalmente brega, feita para cantar junto com o amigo-irmão fã de Raul! Eu certamente já o fiz! 
           Em seguida Raulzito emenda com um agitado rockabilly questionando o conservadorismo estético no rock'n roll dos anos 70. "Eu não nego que a poesia dos 50 é bonita, mas todo o sentimento dos 70 aonde é que fica? Eu vou fazer o que EU gosto! Mamãe já ouve Beatles, papai já desbundou, com meu cabelo grande fiquei contra o que eu já sou." Aqui Raul divaga sobre a artificialidade de estilos de música comerciais. Em uma entrevista de 1987 Raulzito comenta esse trecho:

"Esse movimento todo foi por água abaixo porque o sistema se utilizou disso e os jovens não notaram que estavam comprando roupa hippie. Como os punks comprando roupa punk, raspando a cabeça e cantando músicas que o sistema comercializa. Não é assim que se entra. Tem de entrar em buraco de rato. Não como esses conjuntos que a Globo faz, que são meteoros e são “sucumbidos”. As coisas pré-fabricadas não duram."
Raul Seixas (em entrevista à revista Bizz em 1987)

           E justamente por conta dessa esquizofrenia estética, Raul lança mais um grito de guerra libertário: "EU VOU FAZER O QUE EU GOSTO!!!" Reparem que esse disco é cheio de gritos de guerra. É um disco anarquista super pra cima! Ele grita na sua cara: "Vai lá! Você também pode! Eu vou fazer o que eu gosto! EU VOU! Onde eu to não há bicho papão. Minha espada é a guitarra na mão. Vamos lá! Levanta a sua mão sedenta e recomece a andar! Não deixe que te falem o que fazer, o que sentir. Onde você está não há sombra de Deus!" Essa é uma das características que eu mais gosto nesse álbum. É um disco para cima sem ser burro!
           E a próxima música do disco é também uma das minhas preferidas de toda obra do Raul: "Paranóia". A ideia central da música é que o conceito de um Deus onisciente, onipotente e onipresente é algo assustador. "Deus vê sempre tudo que cê faz. Mas eu não via Deus, achava assombração. Mas eu tinha MEDO!" Nos anos 1970, no Brasil, Raul estava colocando da forma mais clara possível que esse Deus maluco das religiões organizadas estava muito mais próximo do conceito de "medo" do que do "amor". Olha que ideia avançada para o tempo!! "Se eu vejo um papel qualquer no chão, tremo, corro e apanho para esconder. Medo de ter sido uma anotação que eu fiz, que não se possa ler, e eu gosto de escrever, mas eu sinto MEDO!" Nesse trecho Raul faz uma clara referência à censura moral que fiscalizava tudo que ele escrevia na época. Lembro aqui que ele havia sido expulso do Brasil após o lançamento de "Krig-ha Bandolo" em 1973 e após o lançamento e estrondoso sucesso de "Gita" em 1974 foi autorizado a voltar para então lançar "Novo Aeon" em 1975.
           E é esse medo do poder repressivo de uma ditadura que Raul compara com Deus. E sabe porque Raul conseguiu tocar tantas pessoas? Porque não tinha o pedantismo de muitos filósofos. Raul falava para o cidadão comum, sem muita instrução formal de forma simples e clara: "Vacilava sempre a ficar nu lá no chuveiro com vergonha. Com vergonha de saber que tinha alguém ali comigo vendo fazer tudo que se faz dentro do banheiro! VENDO FAZER TUDO QUE SE FAZ DENTRO DO BANHEIRO." Olha a simplicidade com a qual Raul transmite esse conceito filosófico de que o Deus da maioria das pessoas é um ser imaginário repressivo, assustador, ditatorial!
            A música seguinte "Peixuxa", voltada ao público infantil, inventa um mundo submerso de um grupo social de peixes que na verdade representa uma fábula da nossa sociedade. Já é um sinal de um Raul preocupado em fazer com que sua mensagem chegasse à mente das novas gerações. Isso se repetiria em 1983 com o clássico "O carimbador maluco (Plunct-plact zum)". Raul dizia que aos 11 anos de idade já desconfiava da verdade absoluta. Se com essa idade ele tinha cognição suficiente para perceber uma das ideias centrais que permeou sua filosofia ao longo de toda vida, porque não lançar músicas filosóficas voltas ao público infantil? Crianças também pensam. Inclusive muitas vezes com uma clareza muito maior do que a de inúmeros adultos. E de forma infantil Raul termina com: "Seu peixuxa antigamente, foi chamado de Deus dos mares, ainda guarda em casa o tridente. E quando eu olho o mar com petróleo, eu rezo a peixuxa que ele fisgue essa gente." Raul lançando a cultura do cuidado com o meio ambiente para as crianças em meados dos anos 1970. Veja como é um disco para cima, tentando plantar boas sementes através de questionamentos sobre praticamente tudo.
            A música seguinte "É fim do mês" narra a insensatez da vida cotidiana dentro do nosso modelo de sociedade. É uma sequência de "Ouro de tolo" em termos conceituais. Narra as aflições do homem nessa desesperada busca por dinheiro para pagar contas que não param de chegar, consumindo o que não precisa para preencher o vazio da venda de seu tempo de vida para o dono da sua mão de obra. "To terminando de pagar a prestação do meu buraco, meu lugar no cemitério para não ter que me preocupar de não mais ter onde morrer. Ainda bem que no mês que vem posso morrer. Já tenho o meu tumbão." E então narra o ímpeto de adaptação do homem de acordo com as condições que lhe são impostas. "Ele só quer saber se adaptar".
           A música seguinte "Sunseed" é uma bela balada romântica cantada a duas vozes por Raul e sua mulher Gloria Vaquer que emenda com o mantra "Caminho II" que também narra as diferenças nos caminhos dessa vida, mas termina de forma conceitual com o mesmo trecho: "o caminho da vida é a morte". E apos essa frase mórbida vem a última canção do disco...
              A última música "Novo Aeon" é o sopro de esperança do surgimento dessa nova sociedade libertária, sem Estado, sem Igreja, sem casamento, sem censura moral, sem a venda do seu tempo por um pedaço de papel para comprar um lugar para morrer após o sopro da vida. A letra dessa música é tão coerente e fecha tão bem o disco que não vou falar mais nada. Prefiro encerrar essa resenha com a letra de "Novo Aeon" que fala por si só:

Novo Aeon - Raul Seixas

O sol da noite agora está nascendo 
Alguma coisa está acontecendo 
Não dá no rádio nem está 
Nas bancas de jornais 

Em cada dia ou qualquer lugar 
Um larga a fábrica, outro sai do lar 
E até as mulheres, ditas escravas, 
Já não querem servir mais 

Ao som da flauta da mãe serpente 
No para-inferno de Adão na gente 
Dança o bebê uma dança bem diferente 

O vento voa e varre as velhas ruas 
Capim silvestre racha as pedras nuas 
Encobre asfaltos que guardavam Hitórias terríveis

Já não há mais culpado nem inocente 
Cada pessoa ou coisa é diferente 
Já que assim, baseado em que você pune quem não é você? 

Ao som da flauta da mãe serpente 
No para-inferno de Adão na gente 
Dança o bebê uma dança bem diferente

Querer o meu Não é roubar o seu 
Pois o que eu quero É só função de eu

Sociedade alternativa 
Sociedade novo aeon 
É um sapato em cada pé 
É direito de ser ateu ou de ter fé 
Ter prato entupido de comida que você mais gosta 
É ser carregado, ou carregar gente nas costas 
Direito de ter riso e de prazer 
E até direito de deixar Jesus Sofrer 

FIM!

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