Precisamos falar sobre o Dark Side


The Dark Side of the Moon” é mais do que um disco de rock. É uma viagem mental na forma de sons. É um disco que consegue reunir lindas canções, letras filosóficas, transições conceituais entre as faixas, uma mixagem digna de ser chamada de obra de arte, timbres deliciosos e uma fluidez assustadoramente bela que leva o ouvinte de um estado mental a outro sem que este perceba as mudanças extremamente sutis de atmosfera que pouco a pouco o conduzem através de uma jornada interna e o obrigam a olhar dentro de si mesmo (ou se perder).



O disco começa com batidas de coração que gradativamente somam-se ao som de caixas registradoras com intensidade crescente até que no ápice dessa explosão de sons, lindos gritos femininos anunciam a entrada da batida mais agradável a este ouvido humano que vos escreve: e temos “Breathe (in the air)”. Uma canção existencialista que nos afirma em alto e bom tom que tudo que tocamos e vemos é tudo que nossa vida é e será. Esse conceito permeia o disco inteiro. O que é a realidade? O que é a loucura? O que é a vida? Se somos finitos, então por que corremos? Porque temos a relação que temos com o tempo? Por dinheiro? Afinal de contas, o dinheiro não seria a raiz de todo o mal? E esses questionamentos aparecem ao longo de todo o disco. “Breathe” é apenas o prenúncio. Um convite para que você respire e embarque na jornada pelo resto do álbum.


E então começa “On the run”, uma explosão de sons psicodélicos e loopings de sintetizadores dos anos 70 tentando reproduzir o que seria a música do futuro, utilizando para isso sons do lançamento de uma nave espacial em modo sequencial para criar uma batida para os loopings criados pelo genial Roger Waters. "On the run" é uma provocação. Seria a música do futuro essa coisa sem coração feita por máquinas? Uma música sem alma, sem sensibilidade, sem harmonia, sem o elemento humano? Será que nessa corrida louca rumo aos mitos que inventamos para fornecer um sentido a nossa própria existência acabaremos por perder a nossa humanidade? Essas questões não são colocadas na forma de palavras. "On the run" é uma música instrumental, mas cheia de profundidade, como tudo que o quarteto mágico fez nos anos 70. E esse som do futuro acaba no auge de sua intensidade sonora cheia de camadas, com uma linda explosão mixada em estéreo 4.0 (formato quadrifônico). E então silêncio... um longo silêncio... Até que relógios sincronizados entram em cena de forma suave para repentinamente começarem a tocar, anunciando um alarme, como um aviso de que o tempo já está contando.


E temos “Time”. Uma linda canção que discute questões filosóficas que afligem o homem desde o início dos tempos. Essa música narra a percepção de todos nós quando nos pegamos no início da fase adulta e percebemos que a vida já começou. “Ninguém te disse quando correr, você perdeu o tiro da largada...”. E parafraseando a letra de Roger Waters: nós sabemos que o sol é o mesmo, mas de um jeito relativo... Estamos ficando mais velhos, parece que nunca dá tempo e o que resta é aguentar em desespero silencioso, meio a maneira inglesa.. Mas o tempo acabou e a música também. Talvez eu tivesse algo mais a falar? E assim “Time” disseca as aflições do ser humano em vista de sua finitude e sua eterna luta contra o tempo. Mas lembrem-se que em “Breathe” já tínhamos o sopro existencial de que tudo que tocamos e vemos é tudo o que nossa vida é e será... Nesse sentido, estamos correndo para que? Navegando pelas marés mais turbulentas em direção a morte certeira?


E em meio ao caos gerado por todos esses pensamentos, temos uma linda pausa para a entrada da harmonia mais linda já criada por um ser humano. Os simples acordes de piano de Richard Right com trechos de falas de pessoas comuns ao fundo discorrendo sobre a morte. Até que a coisa mais linda do mundo acontece: "The great gig in the sky" e o melhor solo vocal da história da raça humana! Gritos viscerais, melodiosos, emotivos, intensos, sutis, criando uma dinâmica que leva o ouvinte a viajar pelos sons. Vejo esse momento como uma demonstração da força da música como experiência de transcendência metafísica do ser humano para outro lugar, um lugar mais poético, lúdico, bonito e profundo. Essa música é a prova cabal de que um som pode valer muito mais que todas as palavras do mundo. Acredito fielmente na ideia de existe mais vocabulário nas seis cordas de uma guitarra do que em todos os dicionários do mundo.


E ao final dessa bela canção temos silêncio, um curto silêncio, seguido pelas mesmas caixas registradoras do início do disco. Mas dessa vez elas compõem uma linha rítmica bem definida. Temos uma mixagem brilhante de sons de caixas registradoras criando uma batida e ouso dizer até um protótipo de melodia. E então entra em cena uma linha simples e poderosa de baixo que puxa esse blues pesado e bem marcado chamado “Money”. E essa música já deixa claro seu recado ao afirmar categoricamente que o “dinheiro é a raiz de todo mal hoje em dia”. Uma música anarquista, compatível com a filosofia existencialista anunciada nos primeiros versos do disco. E em “Money” temos também psicodelia pura com direito a uma mudança de andamento super não-ortodoxa nesse tipo de blues. E depois de vários solos maravilhosos da guitarra mais bonita do mundo, do Sr. David Gilmour, a música volta à batida original e continua versando sobre tudo que o “dinheiro” representa não só em termos de sociedade, mas para a nossa insatisfeita espécie humana que corre contra o tempo, vivendo uma vida finita, atrás dele: o dinheiro.


E então temos “Us and Them”, talvez mais uma referência existencialista “a la Sartre”? Esse título me remete à ideia de que o “inferno são os outros”. Acho que isso não é coincidência. E a letra de “Us and Them” corrobora minha impressão: “Nós e eles, e afinal de contas, somos apenas homens comuns... Preto e azul, e quem sabe qual é qual? E quem é quem?... “Cima e baixo, e no fim estamos apenas a rodar e rodar e rodar...” Só consigo me lembrar da ideia do filósofo oriental Krishnamurti: nascemos como entes humanos, a partir do momento em que nos tornamos indivíduos, surge a fragmentação do ente. E do ponto de vista musical, precisamos destacar que esses lindos versos são apresentados ao som de um maravilhoso jazzrock com saxofones belíssimos, backing vocals com vozes que beiram a perfeição matemática, um refrão intenso e uma dinâmica poderosíssima que oscila entre um suave ritmo ondulante dos versos dicotômicos que permeiam a canção e um refrão de várias vozes cantado de forma intensa em camadas com pratos de ataque, viradas e tudo o mais que a magistral bateria de Nick Mason decide fazer.


E de forma súbita, sem emendas temos “Any Colour you Like”, outra obra prima instrumental que envolve um trabalho primoroso de mixagem. Escute essa música no escuro, com fones de ouvidos de boa qualidade e no último volume. Sinta a alternância das guitarras entre lado direito e esquerdo do cérebro. Cada uma com um timbre e uma levada de acordo com o lado do ouvido no qual o som “decide” sair! Que trabalho de mixagem maravilhoso. O ouvinte certamente perceberá duas guitarras em uma agitada conversa. Mais um sopro de esperança, talvez? Será que o Floyd está querendo nos provar que às vezes melodia, harmonia e ritmo possuem mais potencial léxico que as próprias palavras? Mais uma “ode” à música e ao seu poder? Tudo isso com muitos requintes de psicodelia, o que nos leva à próxima canção: “Brain damage”!


"Brain damage" é uma das minhas canções preferidas do Floyd! Essa música é especial por sua carga emocional densa. É uma música para o amigo Syd, primeiro vocalista do Floyd que havia partido para outros planos de consciência devido à uma provável esquizofrenia não diagnosticada adicionada ao uso abusivo de ácido durante os anos 60. E a letra então narra o que poderia estar se passando na cabeça de um transtornado Syd: “Um lunático está na minha cabeça, você levantou a lâmina, fez a mudança e me consertou para que eu ficasse são. Você trancou a porta e jogou a chave fora. Tem alguém na minha cabeça, mas não sou seu.” E então poderíamos ter uma resposta dos colegas remanescentes de banda para o pobre Syd: “E se uma nuvem explodir e retumbar um trovão em seus ouvidos e você gritar e ninguém ouvir e se a banda na qual você toca começar a tocar em tons diferentes: te vejo no lado escuro da lua...” Só de escrever essas palavras já fico emocionado.


E após essa linda homenagem temos “Eclipse” que reforça todas as ideias existencialistas do disco na forma de frases diretas que afirmam que tudo o que somos, pensamos, sentimos, fazemos, vemos, todas as informações que são lançadas a cada um dos nossos sentidos estão debaixo do sol, mas o sol encontra-se obstruído pela lua num magnífico “Eclipse”. Aqui vejo duas belas interpretações. Inicialmente essa letra me remete ao que existe no nosso inconsciente, ou nas palavras de Nietzsche: "a consciência é uma garrafa vazia em um oceano de afetos em maremoto." Como não conseguimos sair da garrafa, somos levados por esse agitado mar de afetos desconhecidos (eclipsados pela lua?) com uma consciência apenas limitada da nossa verdadeira essência. Uma outra interpretação que vejo seria a lua representando a loucura que levou Syd e que ofusca o brilho solar que ele poderia emitir caso não houvesse experenciado esse “Eclipse”. Aqui talvez tenhamos uma referência a “Shine on you crazy diamond”, música tema do próximo disco da banda, gravado em 1975: Wish you were here.

"Dark Side of the Moon" é um disco que reflete as aflições emocionais dos membros da banda pela partida de Syd. O quarteto mágico, composto por esses 4 geniais jovens adultos em 1972, pressionados pela gravadora a criarem um disco excelente, com uma série de sentimentos de culpa por estarem continuando suas vidas sem o amigo Syd. A particular história do Floyd é a musa inspiradora das obras audiofônicas mais geniais já criadas na história da humanidade. Junte essa inspiração a 4 músicos brilhantes, não só como músicos, mas como seres pensantes, e temos essa obra-prima. Para mim “Dark side of the moon” é a maior conquista da espécie humana. Acredito que nunca mais conseguiremos superar isso!

E voltamos às batidas de coração do início do disco...

FIM!

Comentários

  1. Respostas
    1. Não poderia concordar mais, irmão. Escuto esse álbum há mais de 15 anos e até hoje continuo tendo novas percepções com ele. A espécie humana jamais irá superar isso! Abraços!

      Excluir

Postar um comentário

Postagens mais visitadas deste blog

A linguagem e a impossibilidade da verdade

Novo Aeon