O bem que a ciência faz (na visão de um cientista)

         Quando digo às pessoas que sou cientista já espero logo a pergunta: "Você trabalha com o que?". Gentilmente digo que trabalho com fluidos magnéticos. Em seguida segue a tréplica habitual: "E isso serve para que?"!
       Eu entendo que nossa sociedade nos treina desde muito jovens a valorizarmos apenas aquilo que é financeiramente rentável ou rapidamente aplicável. Mas não consigo deixar de sentir um enorme incômodo no fundo do peito com essa simples pergunta: "Serve para que?".

E porque essa pergunta me incomoda tanto? Bom, é o que explicarei a seguir...

        Sou um cientista, então vou tentar explicar como um. Vamos fazer um experimento mental, ok? Imagine um não-cientista que nesse texto terá o nome de "Controle". Pois bem, Controle está de férias, numa praia paradisíaca, numa linda noite de verão, clima agradável, céu "limpo", em um local com pouca iluminação artificial. Nesse contexto a visão que Controle tem do céu a olho nu é espetacular. Mas tente visualizar a cena. Se concentre para imaginar esse cenário. 
         Quais pensamentos a mente de Controle produzirá em vista desse cenário? Podemos postular que provavelmente serão pensamentos majoritariamente direcionados ao espectro do "positivo" (em termos do conforto psicológico proporcionado por estes). Pensamentos de admiração pela imagem visual formada, pensamentos de que aquele é um momento bom e que deve ser aproveitado, etc. (ou caso Controle seja alguém da geração que nasceu nas proximidades nos anos 2000, provavelmente estará ansioso olhando para a tela de um dispositivo que produz um brilho desconfortável aos olhos para ver como está a lua que o amigo dele postou no Instagram, ao invés de admirar a lua real ali no seu campo de visão analógico). Mas tudo bem, vamos partir da premissa de que Controle está feliz pelo que consegue captar com seus míseros 5 limitados sentidos humanos naquele momento.
           Agora vamos imaginar uma outra pessoa nesse mesmo cenário. Controle sai de cena e dá lugar a um cientista chamado Isaac. Provavelmente Isaac terá os mesmos pensamentos reconfortantes de Controle, afinal de contas Isaac é um ser humano, apenas escolheu ser Cientista, da mesma forma que outros são músicos, advogados, engenheiros, etc. Isaac é apenas um cientista que tem um trabalho remunerado que o paga para ser cientista. Sem glamour, sem pompa, sem pose: um cientista!

"O interessante desse experimento não são as prováveis semelhanças e sim as prováveis diferenças entre os "tipos de pensamento" de Controle e Isaac."
            
            Isaac olha para a lua e pensa: 

"Que lua bonita. Que fenômeno físico do caralho! Consigo captar um brilho muito intenso emanando dessa bela lua. Certamente o fenômeno que capturo com meus olhos é uma manifestação de uma viagem cósmica fascinante. Tudo começou no interior de uma estrela solitária num sistema planetário no qual essa mente que observa, entende e explica, também habita. Essa jornada envolve um valente grupo de fótons que após uma árdua batalha para conseguir percorrer o interior do sol passando por explosões de plasma, veio parar justamente na minha retina. Plasma! Um estado da matéria vermelho e quente. Com temperaturas da ordem milhões de graus, se movimentando numa dança caótica devido ao termo não linear da equação de Navier-Stokes (aqui meu alter-ego diz: não é a toa que tatuei essa linda equação no meu ante-braço). E é nesse ambiente hostil que esse grupo de fótons inicia um plano de fuga. Precisamos de um plano de fuga! Temos que sair desse inferno! E começam a abrir caminho por esse ambiente inóspito até que depois de uma árdua luta (com alguns tendo enlouquecidos no meio do caminho, presos num looping infinito no interior da estrela) esse valente grupo consegue sair do inferno. Eles então viajam por um ambiente escuro, vazio, gélido, silencioso, na velocidade da luz durante uma curta viagem de pouco mais de 8 minutos quando repentinamente batem a cabeça num corpo sólido. É a lua que vejo! Mas essa batida de cabeça é muito rápida porque de acordo com a lei que impera no local só uns poucos fótons podem ficar por lá e a casa já está cheia. Essa lei define as propriedades radiantes da superfície da lua e elas dizem que os novos visitantes (os valentes fótons) precisam ir e assim estes são refletidos para o espaço sideral. Mas essas mesmas propriedades radiantes da superfície da lua já selaram o destino desse grupo de fótons. Essas leis obrigam o grupo a partir em um ângulo específico determinado pela absortividade, reflexividade e transmissividade desse fino pó acinzentado formado pelo choque de milhares de meteoritos na superfície lunar e batizado de regolito lunar. E o regolito expulsou esses fótons, mas não só, o regolito enviou esse grupo de fótons em um ângulo específico. Mais precisamente no ângulo exato que os fez parar na minha retina. Graças a esse conjunto de eventos meus sensores visuais foram capazes de receber e mandar informações suficientes para meu cérebro, para que através de diversas reações químicas associadas à minúsculas correntes elétricas, essa bela imagem pudesse ser processada dentro de mim. E nesse momento me sinto pleno e agradeço ao bravo grupo de fótons que saiu do interior do sol, se chocou com aqueles pontos da superfície lunar e foi refletido no ângulo sólido exato que culminaria na formação dessa linda imagem que vejo!"
           Os pensamentos de Isaac, além de bem mais interessantes que os de Controle, contém (na visão do cientista) uma beleza muito maior do que a simples admiração visual. Até porque a compreensão não elimina a admiração, muito pelo contrário, ela a amplifica. Vejam que Isaac entende a natureza e por entender acaba conseguindo contemplar em mais detalhes o fenômeno visual. Essa compreensão pode ser reconfortante para muitas pessoas. Eu costumo dizer que existe mais beleza em 1m³ de uma massa de água oceânica vagando pelos mares do que em todos os atos praticados pela espécie humana. E o cientista de fato consegue enxergar essa beleza. Ele viaja através de seus próprios pensamentos e na tentativa de montar uma narrativa interna que satisfaça sua simples curiosidade acaba por se admirar com a beleza de todos aqueles fenômenos físicos que coletivamente o presentearam com aquela experiência sensorial.
          Esses dias um aluno meu comentou que Mecânica dos Fluidos tinha uma matemática muito pesada. Eu, dominado pelo meu alter-ego de Isaac, prontamente respondi: "Não diga uma frase dessas. Você está misturando duas coisas lindas com uma palavra de conotação pejorativa. O estudo da Mecânica dos Fluidos realmente demanda o conhecimento de uma parte razoável da matemática. Mas tanto Mecânica dos Fluidos como Matemática são coisas lindas. Quando você diz que algo é pesado, as pessoas podem associar a uma coisa negativa. Muitas vezes dizemos que a vida "pesa", ou que determinada situação "pesou" ou ainda, que tiramos um "peso" das costas. Nesse contexto a palavra peso pode passar a falsa ideia de que possa haver qualquer coisa de "ruim" em Matemática ou Mecânica dos Fluidos. E isso não existe. Mecânica dos fluidos é a coisa mais linda do mundo, é poesia." Claro que a turma riu, o clima ficou descontraído e terminamos mais uma aula bacana. 
          E então, voltando ao início do texto, quando me perguntam para que serve a minha pesquisa, acho que após essa descrição vocês vão concordar comigo que a melhor resposta que posso dar é: "Serve para me deixar feliz!"
              

FIM!

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