Instinto, razão e sentimentos

       Grande parte dos problemas emocionais do homem decorrem do eterno conflito "instinto x razão". Sabemos racionalmente que somos animais e que possuímos um lado selvagem, mas distraídos pelo cotidiano e inebriados pelo poder da razão acabamos nos comportando como se não  o fôssemos. Esse não reconhecimento de nosso lado selvagem, essa eterna luta contra a nossa própria natureza, segundo Nietzsche é responsável por uma "degeneração dos instintos". Nesse sentido, o homem é uma aberração da natureza. Não existe nada na natureza parecido com a gente. Aquele fator chave que nos diferencia de todos os outros animais é justamente a nossa racionalidade. Através dela  podemos identificar padrões nos eventos observados no espaço e no tempo. Essa identificação de padrões somada a um processamento inteligente nos possibilita modificar de forma intencional o nosso ambiente para que possamos atender melhor as nossas vontades naturais e suprimir de forma mais eficiente grande parte dos nossos desconfortos. E essa modificação é feita com base em estratégias elaboradas após intrincados processos deliberativos dentro dessa incrível máquina orgânica chamada "cérebro". 
           O problema aqui é que apesar da razão, ainda possuímos alguma coisa de "instinto". Esse instinto selvagem que está no centro de nosso surgimento como espécie. E fica claro perceber isso com o seguinte exemplo: imagine uma criança que nunca viu um cachorro na vida. Essa criança encontra então um cão raivoso que começa a latir de forma agressiva para ela. Mesmo que ninguém tenha "ensinado" a ela o conceito de "medo", ela sentirá algo muito parecido ao que você, adulto, consciente do perigo de ser atacado por um cachorro, iria sentir: um medo primitivo, instintivo, biologicamente programado, não-ensinado, natural. Esse simples exemplo mostra que apesar de dotados de razão ainda possuímos algum instinto selvagem. A questão é que a razão humana foi capaz de mudar de forma tão intensa nosso meio ambiente e numa escala de tempo tão curta, que a evolução biológica da espécie não acompanhou essa mudança. No fundo somos biologicamente "idênticos" aos homens das cavernas, mas vivemos com tablets, smartphones, computadores, carros, aviões, luz elétrica, confortos inimagináveis, comendo coisas que nem parecem comidas, interagindo virtualmente com outras pessoas, assumindo papéis completamente incompatíveis com nossa própria natureza e seguindo regras e códigos de conduta definidos por uma moral coletiva a qual aceitamos voluntariamente nos submeter para viver nesse modelo de paz-social.
            As perguntas que deveríamos fazer para tentar extrair alguma lógica de como nossas ações se relacionam com nossos sentimentos consistem na busca pelos "porquês" de nossas ações. Porque fazemos o que fazemos? Porque modificamos tanto o nosso ambiente? Porque aceitamos viver sobre regras que não criamos? Porque lutamos contra nossa natureza? Porque nos sentimos tristes por ações que escolhemos fazer? Porque fazemos coisas mesmo sabendo que nos farão mal? Porque julgamos mal aqueles que visam o próprio bem-estar? Porque colocamos a experiência coletiva acima de nossas vontades individuais, mesmo sabendo que quem sentirá nossos sentimentos somos "nós" e não "eles"?
             Toda ação humana é motivada pela tentativa de suprimir algum tipo de desconforto.  Bebemos água porque sentimos o desconforto da sede. Modificamos o mundo da forma que modificamos (como espécie) na tentativa de termos mais conforto. Inventamos a roda, aquecimento residencial, aviões, camas, eletrodomésticos, regras de conduta, e tudo que existe no mundo (produto do engenho humano) para suprimir desconfortos individuais das mentes por trás de todas essas invenções. A questão chave aqui é que o desconforto que motivou Thomas Edison a inventar a lâmpada não se aplicava a todas as pessoas de seu tempo. Nem todos estavam desconfortáveis com a ideia de não haver lâmpada. Claro que a invenção da lâmpada foi conveniente para muitas pessoas e talvez por isso a ideia tenha sido um sucesso. Mas nem tudo que existe no mundo deva necessariamente fazer sentido para todo mundo. Os desconfortos são individuais, assim como as vontades naturais, instintivas, de cada ser humano. Mas a paisagem é a mesma, a moral é coletivizada, as regras são gerais e como o ser humano é intrinsecamente inseguro (como consequência de sua razão, consciência de si próprio e da finitude de sua vida) ele busca na imitação do comportamento do outro uma tentativa de compartilhar a responsabilidade sobre seu bem-estar com o mundo. Mas ninguém rigorosamente sabe qual a melhor forma de viver. Se pudéssemos tabelar a vida teríamos erradicado a tristeza. E tentar definir para si a melhor forma de conduzir a própria vida exige esforço, pensamento, introspecção, deliberação. O caminho mais "fácil" então consiste na adequação de nossas condutas às regras sociais vigentes. 
                O problema é que o "mais fácil" não necessariamente funciona, pois cada ser humano teve encontros únicos com o mundo e por isso possui uma personalidade única, desejos únicos, ideais únicos, percepções únicas, vontades únicas. E na tentativa de se adequar ao meio em que vive, ele interioriza tudo aquilo que não consegue exteriorizar, domesticando-se cada vez mais,  negando cada vez mais seu lado selvagem, instintivo, natural. O homem, através da razão, foge de sua própria natureza selvagem e esse eterno conflito entre o que ele não escolhe sentir, mas sente, e o que ele escolhe fazer, mesmo indo contra aquilo que naturalmente sente e gostaria de fazer, gera um enorme ressentimento com o mundo.  E nesse ressentimento, inebriado pelo cotidiano, o homem não entende o que sente, se queixa com o mundo, sente-se frustrado sem perceber que ele escolheu se adequar, se domesticar, se negar, se odiar, não aceitar seu lado natural e se colocou voluntariamente naquela situação, enganado pela promessa de uma paz social, de um progresso não planejado por ele, de ideais morais completamente alheios às suas vontades naturais. Nessa dicotomia ele se perde e não percebe que a única forma de se encontrar é olhando para si e não buscando na imitação das condutas dos outros aquilo que só ele sabe que quer.

FIM 
                

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