A linguagem e a impossibilidade da verdade

      Esses dias em um momento de tédio induzido por um compromisso chato da vida adulta, do qual não consegui fugir (juro que tentei), me vi com um papel e artifícios de escrever em minha frente. Meu cérebro então começou a produzir pensamentos e mandou minha mão direita escrever palavras-chaves para um futuro texto no blog. Segue abaixo o que acabei escrevendo...


      Porque diabos escrevi isso naquele momento? Poderia responder essa pergunta com duas frases de Nietzsche: "Algo pensa em mim." ou "A consciência é uma garrafa vazia em um oceano de afetos em maremoto." Entendo dessas frases que na concepção de Nietzsche não existe espaço para  uma possível separação entre as ações do corpo e da alma (não a alma transcendente das religiões, mas a alma como um veículo de produção de pensamentos separada da materialidade do corpo). E essa ideia  monista (que  pode ser encontrada em Spinoza e Nietzsche por exemplo) me parece ser um excelente ponto de partida para esse texto. Quando tento explicar porque pensei o que pensei na ocasião daquele chato evento me deparo com essa dificuldade fundamental: aparentemente existe uma força motora desconhecida que formula pensamentos em mim. A nossa percepção consciente só enxerga parte dos pensamentos formulados por essa força motora. Quando Nietzsche diz que a consciência é uma garrafa vazia em um oceano de afetos em maremotos, no fundo ele te convida para que através da deliberação racional você consiga sair da garrafa e enxergar os afetos que te motivam a pensar o que você pensa. Esse processo de deixar vir à tona é o que se chama na psicanálise de "livre associação de ideias". Muitas vezes o processo de tentar enxergar além da garrafa acaba por se tornar um processo de cura para males da psiquê humana. A partir do momento em que sabemos que não existe um monstro dentro do armário, o medo do monstro desaparece. A esperança de que não existe um monstro no armário só existe porque também existe o medo de que o monstro esteja ali. Em qualquer caso a eliminação do medo é atingida através da supressão da ignorância por meio do conhecimento.
        Dito isso, vamos às ideias que encontram-se no título desse texto e no brainstorm que escrevi durante meu momento de tédio ontem. Gostaria de começar essa reflexão falando sobre o mundo das ideias de Platão. Estou lendo no momento a república de Platão. Essa série super interessante de pequenos livros consiste em um diálogo entre Sócrates e seus discípulos. Nesses diálogos Sócrates tenta responder quais são as características da justiça. A parte inicial do livro é focada no campo da moral (a tentativa de responder: o que é o bom?), mas ao longo das discussões passa pelo campo da estética (o que é o belo?) e conforme o livro avança acaba entrando cada vez mais no campo da epistemologia (o que é o conhecimento? quais as limitações da produção de conhecimento? como diferenciar o conhecimento verdadeiro do falso? a boa filosofia dos sofismas?). O livro mais famoso da república de Platão é o livro VII que trata da alegoria da caverna. Muitos já ouviram falar do mito da caverna de Platão. Não vou me alongar aqui nos detalhes dessa alegoria, mas gostaria de dizer que o dualismo platônico se apresenta de forma muito clara nessa clássica parábola: existe o corpo, que é limitado pela percepção sensorial (as sombras projetadas dentro da caverna por um feixe de luz que sai de fora dela) e existe a alma, que não possui as restrições dos sentidos físicos (o lado de fora da caverna). E se nossos sentidos enxergam apenas as projeções da verdade do mundo, como conhecer a verdade? Para Platão o verdadeiro filósofo deve ser capaz de apreciar a verdade das coisas em si. Reconhecer o belo sem que o belo esteja vinculado à beleza de objetos específicos, reconhecer a justiça em si, sem que a mesma esteja vinculada à ações específicas que pudessem ser categorizadas de justas ou injustas, reconhecer a verdade, sem que ela esteja limitada pela percepção sensorial do corpo sobre os eventos do mundo. Nesse sentido, para Platão, existem dois mundos: o mundo físico (ou mundo sensível) e o mundo das ideias. E não só isso, existe o corpo e a alma, o lado de dentro da caverna e o lado de fora, o bem e a percepção do bem, o justo e a percepção do justo, o belo e a percepção do belo e por aí vai. A ideia de dualismo permeia a obra de Platão.
       O problema é que o avanço da ciência levou os filósofos modernos a formularem novos pensamentos que vão contra algumas das ideias da filosofia clássica. Cito aqui um exemplo simples. Antigamente acreditava-se que para entender o mundo bastava contemplá-lo. Observa e aprende. Para conhecer o que existe dentro do corpo bastava abrir um corpo e observar, assim seria possível entender a função de cada coisa no corpo. Essa ideia de contemplação fazia sentido quando se acreditava na ideia de que cada coisa no mundo tinha uma função bem definida. Definiam-se as coisas pelas suas funções. O que é um sapato? Um sapato é um dispositivo que serve para proteger os pés em caminhadas. Sabendo a função de um sapato poderíamos definí-lo como tal. O significado de algo estava então atrelado à sua função. Se cada coisa possui uma função, para que eu entenda o mundo basta observá-lo em seu estado natural. Através da contemplação seria possível então entender a função de cada coisa no mundo e entendo a função das coisas, entende-se o mundo. O problema é que com o avanço da ciência descobrimos que o nosso mundo não é o centro do Universo, que este é infinito e encontra-se em expansão e que o caos é a ordem reinante em grande parte dos fenômenos físicos observados no mundo da vida. Ora, se as coisas não existem para servir a um propósito específico, precisamos ir então além da pura contemplação para entender o mundo, pois a contemplação pura e simples só serve para entender as coisas se essas possuem funções bem definidas, passíveis de serem compreendidas por processos contemplativos. Assim os processos de formulação de pensamento sobre o mundo tornaram-se mais complexos.
           Em paralelo a isso, a neurociência começou a entender que essa massa de matéria orgânica que reside dentro de nossos crânios, ou seja, faz parte do corpo, é também o centro de produção de pensamentos (o equivalente à alma para os gregos). Se não existe mais a separação entre corpo e consciência, não existe então espaço para o dualismo Platônico nos dias de hoje. E se não existe mais um mundo físico separado de um mundo das ideias, como definir a verdade que o filósofo busca? Essa é uma pergunta bem interessante e complexa, mas podemos discutir aqui algumas coisas que vão nos levar a lugares interessantes. E a primeira limitação na busca da verdade consiste na própria linguagem.
         Veja que definimos objetos, conceitos e ideias através de palavras. A linguagem é a ferramenta que temos disponíveis para isso. Mas pelas próprias características da linguagem acabamos nos esbarrando em um problema fundamental. Um bom exemplo dessa limitação consiste por exemplo no seu nome. Para que serve o seu nome? Imagino que uma boa reposta seria: para te identificar. Imaginem então o seguinte diálogo:

- Você conhece o Prof. Rafael?

- Que Rafael?

- Aquele que dá aula na Engenharia Mecânica da Unicamp.

- Aula de que?

- Aula de Transferência de calor I e II.

- Ah sim, lembrei. Conheço sim.

      Notem que o vocábulo "Rafael" rigorosamente não quer dizer nada. Além disso voltamos à definição dos gregos na qual as coisas são definidas pela suas funcionalidades. Para identificarmos o que o vocábulo "Rafael" nesse contexto representa tivemos que atribuir ao mesmo as funcionalidades da pessoa cujo nome é Rafael. Notem ainda que existem várias outras pessoas, completamente diferentes, também chamadas de "Rafael". E não só isso, mesmo o Rafael em questão é completamente diferente do Rafael que habitava esse mesmo corpo há 5 anos atrás. Então, apesar da multiplicidade de "Rafaeis" e das mudanças de um Rafael específico ao longo do tempo, continuamos chamando aquele conceito de "Rafael". A "verdade" objetivada por Platão mudou, mas o vocábulo continou o mesmo. Esse exemplo poderia se aplicar por exemplo à tomates, pedras, grãos de areia, ou qualquer outra coisa que existe no Universo. Por mais que existam trilhões de tomates no mundo, você chama um tomate genérico de "tomate", nesse sentido, o vocábulo "tomate" não possui nenhuma pretensão de revelar a verdade do que ele quer dizer. O mesmo serve apenas para transmitir uma noção aproximada da realidade, um vago conceito associado àquela palavra. Essa é uma limitação da linguagem. Se tivéssemos a pretensão de realmente buscar a verdade, deveríamos ter uma palavra diferente para cada nome de pessoa do mundo, para cada tomate existente, para cada grão de areia, para cada objeto do mundo. Não preciso dizer que não temos largura de banda suficiente para isso. Caso nossa pretensão fosse a de chegar à verdade pela linguagem, a mesma perderia sua função comunicativa. Simples assim. Colocado dessa forma, concluímos simplesmente que não existe verdade. E essa conclusão me leva à seguinte pergunta:

"Se não existe verdade, o que existe então?"

        Para respondermos essa pergunta precisaremos pegar uma carona com Sartre ou com Raul Seixas, que também trabalhou de forma bastante eloquente essa questão em várias de suas canções. De qualquer forma deixarei a pergunta no ar e a discutirei em um próximo post. Até lá...

FIM

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