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Moralidade

É só quando me desprendo da moralidade a mim imposta que posso me sentir novamente inteiro. O acréscimo de energia que dessa libertação provém vem para me lembrar do cansaço inerente à adequação do corpo à regras que não foram cunhadas pelo espírito. Esse cansaço me impele à luta para me libertar das algemas que aceitei usar quando minha consciência lutava para se construir. A libertação me ensina que para se soltar das garras da moral é necessário esforço. Algum tipo de construção deve se manifestar: um quadro, uma canção, um poema, um parto. Mas não pode ser qualquer pintura, qualquer melodia, qualquer palavra, qualquer nascimento. A manifestação deve vir da fonte, da morada do espírito, desse infinito de potencialidades que mora no vazio criador, do conteúdo que prescinde a forma, do silêncio que permite a escuta da palavra que liberta. A alma desconhece os livros de condutas, as leis dos homens, as ilusões de certo e errado, os biscoitos da sorte do ego, as ideias tortas de bem e m

Mentira

O cansaço brutal da falta de realidade que sufoca a rotina tem pesado por aqui. O excesso de informações vazias que me bombardeiam as sinapses e os sentidos pela tela do computador tem cobrado seu preço. Na busca por uma conexão qualquer em meio a uma vida vazia de sentido claro vejo que criamos um monstro que agora nos domina na busca de cliques e likes em meio a redes sociais que nos fazem sentir pertencentes a uma estrutura ilusória fora de nós e que visa substituir o afeto, o abraço e a conexão real pelos tons de vermelho das notificações que nos avisam que alguém distante apertou um botão qualquer em reação a uma ilusão de nós projetada pelo nosso inconsciente viciado nesse mundo intocável que habita a nuvem. Me alieno por opção tentando buscar uma salvação desse mar de ilusão que decidiu fazer morada no meu coração. A solidão brutal que me coloca nessa prisão dentro de mim mesmo não se resolve com as notificações que me chegam a todo instante só para me lembrar do abismo do meu i

Deus

Há tempos tenho para mim que Deus é um artista. Mais do que uma explicação racional para essa intuição, convenço-me dessa crença por meio da própria sensação de fazer parte de um quadro em movimento. Quando crio algo em meu piano sinto que estou apenas captando uma vibração do ar e materializando-a na forma de sons. A mesma sensação me vem quando me pego escrevendo e acessando o fluxo dos meus afetos enquanto os dedos digitam as teclas do teclado. Esse acesso que me vem quando sinto estar fazendo arte me remete ao divino que existe em tudo aquilo que nos é desconhecido. Mas por algum motivo essa ideia de um Deus que é só artista tem me incomodado. Deus deve ser algo maior que um artista. O artista apenas representa algumas das características de Deus quando este se manifesta na forma de um ser humano. Deus deve ser também engenheiro, arquiteto, matemático, filósofo e quem sabe até advogado. Deus é a inteligência por trás do movimento dos átomos que compõem  as pessoas. Deus é a força d

Ruptura

Já faz um tempo que tenho percebido em mim um novo tipo de cansaço. Um cansaço que não tira férias, que está sempre ali, ora como protagonista, ora como ruído de fundo. Demorei muito tempo para perceber a natureza desse cansaço. Em um raro momento de silêncio, em meio a uma sinapse acelerada que disparou um pensamento ultralúcido, percebi algo num desses insights raros que costumam me visitar todo mês: estou exausto de mim mesmo. Essa pressão sufocante de ter que organizar todas essas imagens incoerentes  que me habitam e que parecem vivas em meu corpo apesar de não poderem ser tocadas me faz sentir o peso dos anos, dos traumas, das pancadas, dos erros de avaliação de um espírito que já não alcanço mais, mas que perturbam o espírito em evolução que tenta pular desse barco chamado passado e que não para de afundar. Dizem que o nosso corpo é nossa âncora com a realidade. Qual o sentido de uma âncora em um barco feito para afundar? Será que as dores da vida, marcadas no corpo, querem indu

A árvore

Vejo um pássaro voando em círculos num lindo céu azul. Sinto o vento afagar minha pele, como se me consolasse de mim mesmo. Ouço os pios dos canários ao fundo, como se os habitantes do céu estivessem manifestando em sons a captação dessa frequência que ressoa em tudo. Os insetos parecem querer entrar tambem nessa conversa. Um grilo dá a palavra do dia enquanto uma borboleta sobrevoa seu céu e ignora sua presença terrestre. Olho para o horizonte e vejo uma enorme árvore. Caminho em sua direção. Suas raízes parecem árvores inteiras saindo de seu centro magnífico. Existem raízes por todos os cantos, algumas caem do céu como cipós que buscam a conexão com a terra, outras se espalham pelo chão formando ranhuras que brotam de dentro da terra, buscando a luz e talvez um pouco de ar. Me sinto pequeno e maravilhado com a grandiosidade dessa árvore. Me pego imaginando qual seria a profundidade das raízes que não consigo ver. Dizem que na média, as raízes de uma árvore costumam penetrar na terra

Quase morte

A estaticidade da dinâmica desses dias, que parecem se repetir em ondas dissonantes de afetos em maremoto, me leva a um estado híbrido de viver a vida de mãos dadas com a própria morte. Esse fluxo entrópico sempre crescente, a pressão por uma criação que parece vir da própria natureza, essa necessidade de experimentar possíveis arranjos que levem a um mesmo resultado, essa eterna inconsciência que encontra pequenos alívios em minúsculas compreensões que duram o tempo de um piscar de olhos, a sensação sufocante de uma solidão para a qual não existe cura, o cansaço da consciência de tudo isso que se mistura com a desconfiança de que no amanhã, no próximo grande lampejo dessa luz que tem hesitado em brotar, essas palavras não passarão de uma verborragia imatura de um lado meu que acumula tudo isso que não entendo só para no próximo acesso manifestar uma nova harmonia para ninguém ouvir, um novo texto para ninguém ler ou um novo discurso para ninguém entender. Não se pode vencer a luta co

A casa

Minha casa é o espaço das minhas sensações  Ela não é feita de tijolos, cimento e vergalhões Ela consiste no conjunto das minhas emoções  Seu chão é firmado no meu passado de ilusões  Seu telhado é a soma das minhas projeções  A estrutura da minha casa é etérea, fluida, sutil O tempo fluindo entre um março e um abril Pinta as minhas paredes de rosa, cinza e anil Às vezes me brinda com uma coragem febril E às vezes me leva rumo a um desespero infantil  E no contínuo fluir do oceano dos meus afetos Percebo o ruir daquilo que achava ser certo Aos poucos do sono de mim mesmo desperto Me libertando do peso duro de um concreto Que me esmagava sob a pretensão de ser teto E que limitava a dimensão das minhas asas Fazendo de gaiola o que deveria ser a casa Reduzindo o calor do meu fogo a uma brasa Se agarrando com apego a essa mentira rasa Da separação criada entre o ser e sua causa  Percebendo a ruptura dessa grande ilusão Que se esvai em meio ao vazio da meditação  Vou aos poucos aquietando m