A revolução do indivíduo

       Estou eu, tocando guitarra em casa, num domingo chuvoso, quando decido cantar "Eu sou egoísta" do Raul, música do disco "Novo Aeon" (sobre o qual já fiz uma resenha nesse blog: link aqui).
        Bom, a música termina com as seguintes frases repetidas numa espécie de mantra: "Eu sou egoísta! Porque não?" E eu na minha desafinada cantoria comecei a entonar esse verso enquanto pensava em seu real sentido. Motivado por essa temática decidi escrever aqui para organizar e desanuviar as ideias que passavam em minha mente. Esse blog é um blog egoísta, serve muito mais a um propósito meu de escrever e documentar coisas para melhorar o fluxo das ideias na minha mente do que para atrair leitores. E com essa motivação abro esse post.
         Raul Seixas foi um grande filósofo. Leu todas as grandes obras filosóficas que lhe eram disponíveis em seu tempo. As letras de Raul são atemporais, de tal sorte que mesmo com um plano de fundo limitado por questões espaço-temporais sua temática é sempre atemporal. Raul não tinha causa política, sua causas eram de cunho filosófico. Então, o que será que Raul quis dizer com "Eu sou egoísta! Porque não?". Veja que existem duas questões a serem analisadas aqui. A primeira é a afirmação em tom eufórico: "Eu sou egoísta!". A segunda é a pergunta que ele faz para confrontar o choque visceral de honestidade da primeira afirmação: "Porque não?". 
        Então precisamos começar pensando na afirmação orgulhosa de uma coisa vista como "defeito moral" que é a característica inata do "ser egoísta" sendo alardeada em tom orgulhoso e enérgico, numa espécie de "quebra de correntes sociais" em prol da valorização dos desejos particulares do indivíduo. Aqui já podemos discutir então essa aparente dicotomia lírica intencional. Raul está dizendo de forma positiva, enérgica, assertiva, orgulhosa, sem sombra de dúvidas que é algo que a grande maioria das convenções sociais abomina. Do ponto de vista filosófico a questão é simples: porque atender o ego é um gesto socialmente inaceitável? Essa me parece ser uma pergunta razoável. 
        Como espécie, no início do período neolítico, conseguimos através da nossa racionalidade perceber que a capacidade de organização em pequenas sociedades colaborativas era vantajosa para a nossa própria sobrevivência. Esse foi o início de um processo em constante mudança: a construção da nossa sociedade. Essa complexa teia social de interações começa a se fortalecer com o surgimento da agricultura e com a troca voluntária de produtos entre pessoas. Um excelente plantador de arroz, que acabava produzindo mais do que precisava, achava interessante trocar esse excedente com o bom plantador de feijão, que também havia colhido mais do que precisava para si. 
        Esse simples contrato social é uma centelha que evolui para relações mais complexas. Novos contratos sociais foram surgindo, alguns não muito "justos", que visavam atender apenas interesses muito particulares de um determinado indivíduo sem um "benefício coletivo" que justificasse uma maioria bancando as benesses de um pequeno grupo de pessoas. E aí começam as rebeliões, as revoluções, as mudanças, etc. 
        E no meio de todo esse processo de transformação existem grupos que não desejam o fim dos contratos sociais vigentes, pois são beneficiados por esses contratos. Aqui destaco a Igreja e o Estado como os maiores beneficiários de todos os tempos da maioria dos contratos sociais vigentes ao longo da história. Padres, pastores, gurus, profetas e sacerdotes sempre estiveram próximos de reis, imperadores, ditadores, deputados e senadores. E mais perdido ainda no meio de tudo isso está o conceito do que podemos chamar de "indivíduo".
         O indivíduo é o ser que nasce em um mundo já feito e preso a uma teia social já construída. O indivíduo é essa porção de matéria orgânica que sente, pensa e interage com o mundo. E como tal possui vontades, desejos e aspirações. Mas pelos contratos sociais estabelecidos, é obrigado a respeitar leis que não criou, regras com as quais não concorda, normas que não entende, para conviver "em paz" com outros indivíduos igualmente perdidos no mundo. O indivíduo é obrigado a conviver com si mesmo do instante do nascimento à sua morte certa. Ele é sua única companhia real e inseparável. E mesmo sabendo da finitude de sua vida, é obrigado a fazer uma série de atividades que não escolheu e que lhe foram impostas, para muitas vezes satisfazer vontades que não são suas, mas do padre, do patrão, do amigo, da amante, da esposa, do filho, etc. E ele faz tudo isso na esperança de um instante de vida subsequente mais feliz que o anterior. Mas é sempre na base da esperança, na base daquilo que lhe foi prometido: se você fizer isso vai ganhar uma promoção, se seguir esse código de conduta você vai para o céu, se estudar vai passar na prova, é sempre um desconforto visando uma esperança de que o futuro será melhor. Esses dias estava vendo um vídeo do Clóvis de Barros Filho e ele disse algo que me marcou: "Esperança é uma coisa ruim. Você só tem esperança de que algo bom vai acontecer porque tem medo de que algo ruim aconteça. A esperança está sempre atrelada ao temor. O temor e a esperança são dois lados de um mesmo afeto. E esse afeto pode ser tanto suprimido pelo conhecimento quanto alimentado pela ignorância." 
          E é justamente nessa ignorância, inerente ao ser humano, que o Estado e a Igreja se aproveitam para lançar suas garras sobre o indivíduo. O Estado quer te convencer de que não fosse por ele o nosso mundo seria um faroeste caótico steampunk com pessoas vendendo bebês no OLX! Enquanto a Igreja quer te convencer de que se você fizer certas vontades, que são suas, queimará no fogo do inferno. Porque ela quer que você tenha medo e pergunte ao guru o que fazer. Para que o guru possa controlar cada aspecto da sua psiquê e te transformar num zumbi pagador de dízimo por medo. Então quando Raul berra "Eu sou egoísta!". Ele tá batendo no peito e dizendo: "Quero que se foda essa merda! Vou fazer o que eu gosto!" E quando eu escuto isso eu sinto o elo das corrente se quebrando dentro da minha alma! É anárquico no sentido da coisa mais linda do mundo: Liberdade!
         Em seguida ele faz uma pergunta singela, mas que leva a outra discussão: "Por que não?" Porque não ser egoísta? Porque seria errado ser egoísta? E é óbvio que nessa frase Raul não está incitando as pessoas a serem egoístas no sentido socialmente convencionado para esta palavra. Raul não quer que o cara mate o idoso que está na frente dele para não ter que pegar fila no banco. Ele está questionando: Porque é errado eu pensar primeiro em mim? Porque é mal visto que eu esteja sempre preocupado com o meu bem estar? E nesse ponto eu volto à nossa teia social em constante mutação. A ideia de pensar no bem estar coletivo é bonita e eu adoro essa ideia. Adoro o fato de poder dar um sorriso para a moça que me serve a proteína do bandejão e fazer o dia dela ser um pouquinho mais agradável por isso. Mas a forma como o "egoísmo" é tratado na nossa sociedade não é a forma racional de tratar o conceito. O "egoísmo" como característica de conduta é ensinado como algo horrendo, asqueroso, errado, moralmente desprezível. 
        O bonito é o "ceder". Ceder é belo! Se você cede você é uma pessoa melhor porque cedeu. É importante ceder para termos um convívio harmonioso. Então você cresce acreditando que dever colocar os outros em primeiro lugar, pois fazendo isso você estará sendo uma pessoa boa. Mas aí eu lhe pergunto: será que essa tentativa de ceder sempre não te transformaria em uma coisa que não é você? Você é você pelo conjunto das suas interações com o mundo. Se suas interações ocorrem sempre no sentido de visar o bem do outro, o seu bem estará a mercê das escolhas dos outros. Se vivêssemos em um mundo onde todos são bons, benevolentes e empáticos, as ações dos outros para com você iriam ser o fator determinante no seu grau de satisfação com a vida. Mas para que isso realmente funcionasse, essas pessoas não só teriam que ser boas, benevolentes e empáticas, mas conscientes dos seus desejos e vontades para que suas ações coincidissem com a realização dos seus desejos. Convenhamos que isso nunca aconteceria. 
         Dessa forma você é a pessoa mais indicada para tentar exercer suas potencialidades como pessoa visando o atendimento de vontades que são só suas. E dado que você é sua companhia do início ao fim, um espectador de si mesmo na caminhada da vida, não seria lógico pensar em suas ações visando atender a sua satisfação? E veja que isso não invalida suas características mais fraternas. Pois muitas vezes a nossa satisfação coincide exatamente com a satisfação daqueles que amamos. E aí no nosso egoísmo de termos a satisfação em ver o outro feliz, tentamos fazê-lo feliz. E isso é lindo sem ser imposto. É belo sem ser forçado por um medo de não ser "justo". É no egoísmo de atender as nossas demandas que conseguimos agir na plenitude das nossas potencialidades para sermos uma peça mais eficiente, feliz e funcional na construção do nosso tecido social. 
         Não é o Estado, não é a Igreja: É você!

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