Nós e Eles (uma resenha de um sonho)

        Esse final de semana tive uma experiência transformadora. Pela segunda vez nesta breve vida tive a oportunidade de ver ao vivo um show de uma pessoa, que na minha opinião é o maior gênio vivo da história da arte: Roger Waters, meu membro favorito do Pink Floyd! Diferentemente de uma resenha técnica, minha intenção é de que este texto seja de cunho filosófico e sentimental. Gostaria que essas palavras pudessem ser vistas como um presente para meus irmãos humanos que não puderam experienciar a magia que foi aquele show. 

        Falar de Pink Floyd para mim é difícil. O primeiro texto que escrevi neste blog foi justamente uma resenha do "Dark Side of the Moon" (link aqui), disco que considero uma das mais belas obras de arte produzidas pela nossa espécie. Neste momento estou experienciando algo novo para mim: não estou conseguindo encontrar as palavras que considero mais adequadas aos meus afetos para descrever o show. Quem me conhece sabe o amor que tenho pelas palavras. Sou professor, vivo de construir discursos e narrativas. Escrevo quase todo dia, quando não estou escrevendo artigos científicos estou escrevendo textos de filosofia, poemas e o que mais meu ser sentir vontade de escrever. Eu amo as palavras! Mas no momento estou tendo dificuldade justamente com elas! Esse sentimento faz eu me sentir uma criança. E isso é maravilhoso!

        No entanto, sinto que preciso escrever um texto sobre esse show para tentar desanuviar um pouco esse mar de afetos agitados dentro de mim. Desde que saí do show tenho sentido grande dificuldade de voltar para a "realidade". O pragmatismo do cotidiano é o grande assassino da magia possível da vida. Isso tem disparado uma série de reflexões dentro de mim, que estão clamando por sair da minha cabeça e virar palavras na forma de texto. 

           Havia comprado meu ingresso para esse show assim que estes começaram a ser vendidos. Não sei quanto tempo faz, mas sinto que estou ansiando por isso há um ano. Poucos dias antes do show estava tentando não pensar muito no evento. Queria apenas me permitir sentir o que o Universo colocaria para mim ali. Penso que a expectativa é a mãe da frustração e o plano inimigo da leveza. A magia costuma acontecer quando não esperamos por ela. É uma coisa maior que a gente, diz respeito ao Universo e não às nossas vontades individuais. Minha relação com a música sempre foi muito intensa. Ao longo de toda minha vida a única constante com a qual sempre pude contar foi ela. A música é a minha grande companheira, o meu grande amor! Eu vivo música, eu respiro música, eu penso música, eu sinto música, eu sonho música e eu acredito que a vida no fundo é só uma grande música. 

         Pense comigo: todos os elementos de uma grande música estão presentes na própria vida. A vida possui uma certa duração, tem um início e um fim e entre esses momentos ela tem dinâmica, tensão, preparações, resoluções parciais, repouso, descanso, êxtase, clímax, pedaços de afetos que se repetem e ficam na cabeça (como acontece com os grandes refrões), sentimentos que não podem ser descritos em palavras, narrativas que transmitem ideias, conceitos e emoções (como nas letras de músicas cantadas). Até escrevi um poema aqui sobre isso (link aqui). Por conta de toda a intensidade da minha relação com a música e por tudo que tenho vivido nos últimos tempos estava apreensivo com a ideia de criar muita expectativa sobre esse show. Não queria me frustrar ou sentir algo menos intenso do aquilo que minha vontade desejava. Novamente, essas coisas não dizem respeito às minhas intenções, isso é coisa do Universo e eu sou só um pedacinho dele. Eu adoro sentimentos fortes, não sei nadar no raso, me afogo. E por conta de tudo isso tentei fazer um esforço consciente de não pensar muito sobre o show antes dele. Não quis ver o set list dos últimos shows, não queria tirar foto do show e nem olhar no celular, não queria ler as resenhas jornalísticas dos últimos shows da turnê, enfim, queria chegar lá no estádio e me permitir sentir o que o Universo decidisse colocar ali para mim.

       No dia do show chego no estádio com meus amigos de Brasília em um clima de muita irmandade, amor e com uma empolgação transbordante. No caminho do show, ainda no carro, meu coração já batia em um ritmo totalmente fora do padrão. Assim que desci do carro e fui andando para o estádio quis me distanciar um pouco dos meus amigos para poder sentir sozinho aquele sentimento gostoso de marchar junto de milhares de desconhecidos para assistir um show de rock. Naquele momento não queria conversar com ninguém, queria só sentir. E enquanto caminhava rumo ao estádio ia chorando e andando, sentindo um monte de afetos intensos e inomináveis. Lembrava dos meus tempos de juventude nos quais batia ponto religiosamente em todos os shows de rock que rolavam em Brasília.  Caminhava e me sentia mais jovem a cada pisada. A cada passo rumo ao gramado do Mané Garrincha ia ganhando coragem, perdendo o medo da vida e me permitindo sentir a magia proporcionada pela música. Entro no estádio com o coração querendo pular para fora da boca. Olho para cima e agradeço ao Universo por estar vivo! Choro de felicidade e me direciono ao lugar do show.

          Enquanto esperava pelo início do show sentia um misto de ansiedade, nervosismo, felicidade, empolgação, curiosidade, vontade de chorar, conexão comigo mesmo, tudo ao mesmo tempo. Muitos sentimentos disputando espaço no meu ser, cada um querendo se fazer sentir como num "oceano de afetos em maremoto" (para citar Nietzsche). De repente uma filmagem de uma mulher sentada na beira da praia olhando para o oceano é colocada no projetor principal atrás do palco. Assim que essa imagem alcança minhas retinas começo a chorar novamente. A filmagem continua por alguns minutos. Ao longo desse tempo filosofo comigo mesmo sobre o real sentido dela enquanto alguns irmãos impacientes ao meu redor gritam: "Começa logo." Eu só conseguia admirar a poesia daquela filmagem, que na verdade era quase uma fotografia. Nada de "muito especial" acontecia. Era apenas uma filmagem de uma mulher parada, sentada na areia, olhando para o mar. Mas foi justamente essa ausência de elementos apelativos e sedutores para o cérebro agitado do homem moderno que me marcou. Lembrei de um trecho da letra de "Breathe":

All you touch and all you see is all your life will ever be...

         Aquela mulher sentada na areia da praia me fazia pensar: "A vida é isso. Não precisa de mais nada. É só respirar, contemplar, sentir, existir. Não tem que fazer sentido para a razão. A vida não é feita para ser uma droga para um cérebro viciado em novidades. É só se permitir ser..." E enquanto eu pensava isso as pessoas continuavam impacientes do meu lado, ávidas por alguma "novidade". Alguns reclamavam: "Vai ficar nessa lenga lenga uns 15 minutos..." Confesso que num primeiro momento esses comentários me incomodaram. Na hora eu queria que todos estivessem na mesma frequência que eu. Esse pensamento foi a primeira lição que a arte me trouxe naquele dia: "Aceite as diferenças, aprenda com elas, olhe para dentro de si. Você é a humanidade. Não se assuste diante da fragmentação humana observada no mundo no qual você vive. Essa sua vontade de que os outros sintam como você é egoica. Os outros tiveram seus próprios encontros com o mundo. Esses encontros moldaram os afetos que eles estão sentindo agora. Respeite o outro, aceite a existência do outro. Aprenda com essa aparente fragmentação e busque olhar para o outro com a empatia necessária para que você aprenda com ele. O outro teve acesso a experiências que você não teve. Não julgue, não condene, apenas sinta e aprenda."

         Após alguns minutos dessa filmagem poética, o céu começa a mudar de cor e vai se transformando de um azul calmo e pacífico em um vermelho escarlate vivo, como se a paz tivesse cedido lugar à guerra. E de fato a guerra foi um dos conceitos centrais do show. Explorada de maneira riquíssima e genial pelo incrível Roger Waters junto a diversos conceitos profundos que permeiam a vida de todo ser humano. Essa vermelhidão acaba explodindo em um céu escuro cheio de pontinhos estrelados e o show começa com "Breathe".


         Nesse momento vejo pessoas ensandecidas ao meu redor e desabo em um pranto que durou praticamente o show inteiro, com pequenas pausas para a respiração voltar a um ritmo possível. A representação do céu estrelado na projeção principal me sugeriu a ideia de que somos todos pequenos fragmentos, partes de um todo maior, separados pela nossa própria individualidade, enxergando o outro como uma ameaça, presos a conceitos que visam a separação do homem como forma de controle da maioria por uma pequena parcela que se beneficia com a indústria da guerra e do consumo desenfreado. Minoria esta representada no show através de uma zoomorfização: os porcos!  É importante que se pense fora do dualismo pragmático que nos separa em "esquerda" ou "direita". Os porcos representam a opressão de uma minoria sobre todos nós (pobres e ricos inclusive). Esses conceitos permearam todo o show. 

             Após a maravilhosa execução de "Breathe", que diga-se de passagem sempre considerei uma das melhores aberturas de disco de todos os tempos, começa "One of these days", música de abertura do Meddle, um dos meus discos favoritos do Floyd. Ali o espírito do rock possuiu meu corpo e senti a juventude tomar conta de mim. Várias pessoas pulando ensandecidas ao som de um rock psicodélico maravilhoso, complementado por imagens inacreditáveis nas projeções. Me senti uma criança sem saber para onde olhar. Olhava para o céu e agradecia, olhava para trás para ver o rosto dos meus companheiros de show, queria ver a emoção no rosto das pessoas, olhava para a banda no palco, para as projeções e quando tudo aquilo parecia ser demais para mim eu simplesmente fechava os olhos e balançava o corpo, batia cabeça, dançava, chorava, cantava, pulava, chorava de novo, e ficava nesse looping de ações e sentimentos, sem muito controle da coisa, apenas sentindo aquilo que a arte tinha para me oferecer. E de alma lavada após o fim dessa magistral obra do rock psicodélico começaram os clássicos relógios que antecedem a abertura de "Time". As imagens no telão de relógios em movimento me lembravam os relógios surrealistas derretidos do quadro "A persistência da memória" de Dalí.



          Ao longo da execução de "Time" continuo no meu processo de maravilhamento sem saber como reagir a tudo aquilo que estava acontecendo. Quando não sabia mais o que fazer simplesmente entrava em transe e tentava absorver a energia do lugar. Aos poucos fui percebendo que aquela separação do início do show que eu sentia entre o meu ser e as pessoas ao meu redor ia se atenuando. Independente das questões ideológicas, políticas e religiosas de cada um ali, estávamos em algum nível partilhando afetos semelhantes. Éramos seres humanos buscando alívio para as dores da alma através da arte. A política que ultimamente tem cegado algumas pessoas para compreender os afetos do outro não era de forma alguma a ênfase do show. Apesar da mídia tradicional, tão limitada em suas narrativas, tentar a todo custo resumir uma obra de arte filosófica de enorme profundidade conceitual em uma visão política simplista e desconectada dos afetos mais nobres da nossa espécie, naquele dia isso não iria acontecer. Naquele dia a arte venceu o medo do outro! Eu não era o único que chorava copiosamente. E isso fez eu me sentir mais humano! Um trecho particular de "Time" tocou fundo nos meus afetos:


Every year is getting shorter never seem to find the time. 

Plans that either come to naught or half a page of scribbled lines

           Esse trecho disparou uma série de sinapses na minha cabeça. Comecei a pensar sobre o real sentido da vida. Lembrei de como o tempo parece estar passando mais rápido hoje em dia do que quando eu era criança. Tentei entender o porquê. Na hora postulei que a juventude vem carregada de sentimentos de deslumbramento e curiosidade constantes. Isso nos mantém mais presentes e quando estamos presentes nos permitimos sentir a vida. Ao ficarmos mais velhos parece que as coisas se tornam mais previsíveis. Nosso cérebro viciado acredita que já sabe o que vai acontecer. Passamos então a viver mais dentro da nossa cabeça, sem se abrir para o mundo. E isso é em grande parte incentivado pelo medo. O adulto médio é absurdamente medroso. É justamente o medo do adulto que o motiva nesse apego visceral à política. O medo do irmão transforma aquele que é diferente de nós em inimigo. O contrário do medo não é a coragem e sim o amor. Amor é presença! Estamos falando do tempo aqui, o grande mistério da existência. A criança tende a ser puro amor. Ela se permite sentir. Por isso ela vive e quando isso acontece não falta tempo para mais nada. O tempo só começa a faltar quando não fazemos aquilo que queremos, resta então apenas planejar. O tempo que alguns irmãos gastam construindo discursos políticos para tentar provar àqueles que pensam diferente que seus pontos de vista estão corretos, geraria muito mais amor e presença para todos se fosse transformado em tempo de tentar entender os afetos do outro. Isso aproximaria as pessoas, eliminaria o medo do outro e nos conectaria com a nossa essência. Somos todos humanos!

           E se a vida é aquilo que a gente sente, porque nos permitimos viver uma vida de medo? Porque não damos vazão aos nossos sentimentos? Porque contemos aquilo que sentimos? Não estaríamos indo na contramão da própria vida? Será que a sociedade de consumo na qual vivemos não é a coisa mais anti-vida que pode existir? É tão raro ver um adulto dançar com o coração. Até a dança do adulto médio da sociedade de consumo em que vivemos é contida. A impressão que tenho é que todos vivem morrendo de medo de serem eles mesmos. E esse medo é alimentado pelos meios de controle de massa: basicamente o Estado e a Igreja com uma grande ajuda da imprensa. E é esse mesmo medo do outro que amplifica sentimentos de ódio dentro da nossa espécie. Esses pensamentos permearam minha mente durante todo o show. No fundo aquele show tinha uma mensagem muito forte e especial. Eu ainda não entendia direito essa mensagem. Estava me permitindo sentir o que a arte estava tentando me ensinar. Minha narrativa interna da mensagem do show ainda estava sendo construída conforme o espetáculo se desnudava diante dos meus olhos.   

          Após "Time" veio a música que mais me emocionou em todo o show: "The great gig in the sky". Eu amo essa música com todo o meu coração. Acho a harmonia de uma beleza transcendental, uma sacada de mestre do grande Richard Wright. Essa é uma das minhas músicas preferidas do Floyd. E a interpretação vocal de Jess Wolfe e Holly Laessig (que também arrepiaram nos backing vocals de "Mother") foi digna de provocar uma catarse coletiva que não me lembro de ter experienciado em um show de rock antes. Chorei do início ao fim dessa música. E não foi um choro daqueles de escorrer uma lágrima de canto de olho. Foi de soluçar mesmo e não conseguir parar. Demorei um bom tempo para voltar para algum lampejo de realidade após essa execução. E eu não fui o único. A plateia foi ao delírio com a interpretação das vocalistas. Foi uma das coisas mais lindas que eu já vi na minha vida. Sou muito grato por ter vivido isso.



            O resto do show foi igualmente mágico e marcado por momentos incríveis para os quais as palavras jamais conseguirão se aproximar dos afetos que elas pretendem descrever. A temática principal do show era a guerra. E é preciso entender a história do Roger Waters para compreender a dimensão emocional que esse tema tem para ele e porque ele continua sendo um dos grandes ativistas do nosso tempo. Roger não conheceu seu pai, que foi morto na segunda guerra mundial. E o pai dele por sua vez também não conheceu o próprio pai, que foi morto na primeira guerra mundial. A guerra marcou profundamente a história da família do Roger Waters. O magistral "The Wall" é um conceito belíssimo sobre esse muro que nos separa. E no fundo, muitas vezes sem perceber, acabamos colaborando com uma sociedade doente que nos subjuga e nos reduz a pequenos tijolos nessa construção que fragmenta a própria humanidade. Quando as pessoas se digladiam na defesa de seus políticos de estimação elas não percebem que foram massa de manobra de um sistema que queria justamente isso delas, a separação da humanidade em nome da manutenção de um status quo que nos vende uma falsa ideia de paz social, quando na verdade visa nos separar através do medo para que fiquemos cegos diante daquilo que realmente importa: nossos afetos em comum. Os porcos sempre quiseram nos dessensibilizar, pois eles sabem que a empatia é natural da espécie, apesar deles não conseguirem sentir. Quando a arte do Roger Waters nos induz a resistir não é no sentido de nos voltarmos uns contra os outros, mas sim no sentido de nos unirmos contra os porcos que querem nos separar. Somos todos humanos no final das contas. Igualmente perdidos, confusos, assustados, lançados num mundo que muitas vezes não faz sentido para a nossa razão, finitos, transitórios, carentes de referências, mas programados para sentir afetos semelhantes. Nos apaixonamos, nos conectamos, rimos e dançamos juntos, choramos pela dor do outro, queremos ajudar um irmão. Não vamos nos separar pela defesa daqueles que estão lá em cima, querendo nos conduzir. Cada um de nós deve ser sua própria autoridade.



         Todas essas ideias eram lançadas de forma espetacular numa combinação genial e sensível, digna de uma gigantesca obra de arte. E foi isso que esse show foi: uma obra de arte. Roger Waters conseguiu transcender o próprio conceito de show de rock e chegar em lugares mais profundos dentro de cada uma das pessoas que estiveram ali para experienciar tudo aquilo. As músicas eram o pano de fundo para a construção da narrativa, mas era evidente que existia um roteiro muito bem pensado e organizado para o show como um todo. Em nenhum momento Roger Waters deixou de mostrar seu ativismo e defender aquilo que ele acredita. É importante que façamos um esforço para entender que o verdadeiro artista é por definição um espírito livre. E aqui deixo a definição de Nietzsche do que quero dizer por "espírito livre":

"É chamado de espírito livre aquele que pensa de modo diverso do que se esperaria com base em sua procedência, seu meio, sua posição e função, ou com base nas opiniões que predominam em seu tempo. Ele é exceção, os espíritos cativos, a regra; [...] De resto, não é próprio da essência do espírito livre ter opiniões mais corretas, mas sim ter se libertado da tradição, com felicidade ou com um fracasso. Normalmente, porém, ele terá ao seu lado a verdade, ou pelo menos o espírito da busca da verdade: ele exige razões; os outros, fé". (Nietzsche em "Humano, demasiado humano" )

              Eu tinha certeza absoluta de que o Roger Waters jamais se intimidaria ou mudaria de opinião com base na reação de rebanho que sua repulsa a um certo candidato à presidência do Brasil teve perante alguns de seus fãs. Um gênio não faz o que faz para agradar o rebanho, ele não teme a vaia. Ao contrário, ele tenta se misturar aos homens para despejar um amor que ele teve que descobrir sozinho com base em muito sofrimento. É como o Zaratustra de Nietzsche, que ao atingir a iluminação após 10 anos de solidão nas montanhas decide descer e se misturar aos homens para despejar seu amor pela humanidade. É claro que ele sofre duras consequências por isso, pois dificilmente os espíritos cativos estão prontos para aquilo que os espíritos livres tem a oferecer. O espírito prisioneiro se apega às suas mentiras por medo de suas próprias verdades. Sinto que é um pouco isso o que tem acontecido no contexto político atual do Brasil. E nesse show o Roger Waters estava disposto a empreender a hercúlea tarefa de tentar libertar alguns espíritos aprisionados pelo condicionamento do meio que nos cega para a nossa própria humanidade. 

             A maneira com a qual Roger Waters construiu sua narrativa foi absolutamente genial e espetacular. Crianças locais do DF emocionadas cantando "Another brick in the wall" no palco, mandando beijos e fazendo gestos de coração com as mãos para a plateia fizeram muitos adultos chorarem. Roger Waters usando uma máscara de porco e levantando um cartaz "The world is ruled by pigs" para em seguida tirar a máscara e puxar outro cartaz "Fuck the pigs!". Projeções de belíssimas artes visuais de  Donald Trump sendo ridicularizado com corpo de porco, neném, de quatro, usando lingerie. Um grande aviso na forma de texto no telão: "Trump é um PORCO!".



             O clássico aviso que ele coloca no telão após a frase em Mother: "Mother, should I trust the government?" com a resposta: "NEM FUDENDO (sic)!" As pilastras se erguendo atrás do palco em "Dogs", que foi uma das músicas mais emocionantes do show para mim. A frase "Who was only a stranger at home" sempre bate direto no meu coração e me faz chorar. O porco voador com os dizeres: "Seja humano" que me fez virar a cabeça e tentar seguir seu movimento enquanto ele rodava pelo estádio. O holograma tridimensional com o prisma da capa do Dark Side durante a execução de "Brain damage" e "Eclipse".



            A interação do Roger com o público ao longo de todo o show também foi linda. Era nítido que ele estava emocionado pela reação da platéia naquele show e isso foi muito forte para os meus afetos. Escuto Pink Floyd desde os meus 15 anos de idade e estava a menos de 50 metros de um dos meus maiores ídolos, ouvindo a mesma música que ele, vibrando na mesma frequência, interagindo em algum nível com uma pessoa que eu admiro de um jeito difícil de descrever em palavras, dividindo o mesmo espaço físico e aprendendo com aquele gênio coisas sobre a minha própria vida.  

              Ao final daquelas quase 3 horas de pura magia a imagem central no telão volta para a mulher observando o mar do início do show. A minha compreensão daquilo foi a de que a vida é cíclica e o destino uma roda. A gente viaja pelo mundo nas busca por interagir com nossas próprias emoções, tentando encontrar algum sentido para a nossa experiência transitória, mas no final voltamos para o mesmo lugar: nossa essência. Não temos como fugir de nós mesmos. Por mais que a política tente nos separar somos todos seres humanos. Sentimos os mesmos medos, passamos pelas mesmas angústias, temos as mesmas dúvidas, carecemos de referências do mesmo jeito e por vezes nos sentimos à deriva. E nesse processo de busca por referências fora de nós nos deixamos contaminar por sentimentos nocivos ao próprio ser. Sentimentos de separação, de fragmentação, de um medo do outro que nos separa de nós mesmos. O título do show é extremamente apropriado nesse contexto: "Us and Them" (Nós e Eles). E isso só me lembra o que Sartre muito bem disse sobre os nossos próprios afetos: "O inferno são os outros". O que nós precisamos compreender, como espécie, é que juntos somos mais fortes que os porcos que tentam nos governar. No fundo cada um só pode governar a si mesmo. Mas para isso é preciso mostrar para o outro que ele não precisa ter medo da gente. O medo que você sente do outro se replica no medo que o outro sente de você. E nisso nos desconectamos da humanidade. Mas a própria natureza nos programou para sermos animais sociáveis. E essa desconexão com o outro, provocada pela religião e pelo Estado, gera sofrimento ao ressaltar nossa condição de fragmento. O único caminho possível rumo ao bem estar psicológico da espécie é o da união. E essa união só depende de nós. Não é na política que está a solução e sim na empatia e no amor à humanidade. 

Se teve uma coisa que esse show me ensinou foi isso: ser humano! 

FIM! 

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