O conhecimento daquele que sofre (trecho extraído do livro "Aurora" do Nietzsche)

A condição das pessoas doentes, durante muito tempo e horrivelmente torturadas pelo sofrimento, mas cuja inteligência, apesar disso, não se perturba, não deixa de ter valor para o conhecimento, sem falar até dos benefícios intelectuais que trazem consigo toda solidão profunda, toda libertação súbita e lícita dos deveres e dos hábitos. Aquele que sofre profundamente, encerrado de alguma forma em seu sofrimento, lança um olhar gélido para fora, sobre as coisas: todos esses pequenos encantamentos enganadores em que habitualmente se movem as coisas, quando são olhadas por alguém saudável, desaparecem para ele: ele próprio permanece envolto em si, sem encanto e sem cor.

Supondo que viveu até aqui em qualquer perigoso devaneio, o supremo chamamento à realidade da dor constitui o meio de arrancá-lo desse devaneio: e talvez seja o único meio. A formidável tensão do intelecto que procura se opor à dor ilumina com isso tudo o que diz respeito a uma nova luz: e a indizível atração que sempre exercem todas as novas iluminações é muitas vezes bastante poderosa para resistir a todas as seduções do suicídio e para fazer parecer realmente desejável para aquele que sofre a continuação da vida. Pensa com desprezo no mundo vago, quente e confortável, onde o homem saudável vive sem escrúpulos; pensa com desprezo nas ilusões mais nobres e mais caras que outrora ele próprio partilhava; sente verdadeiro prazer ao evocar de qualquer maneira esse desprezo, como se viesse das profundezas do inferno, infligindo assim à alma os mais amargos sofrimentos: é por esse contrapeso que consegue resistir à dor física, sente que agora esse contrapeso é necessário. Com um impressionante lucidez sobre sua própria natureza exclama: "Seja uma vez teu próprio acusador e teu próprio carrasco, toma teu sofrimento como uma punição que ti próprio infliges! Goza de tua superioridade de juiz; melhor ainda: goza teu belo prazer, tua arbitrária tirania! Eleva-te acima de tua vida como acima de teu sofrimento, contempla a fundo as razões e as desrazões!"

Nosso orgulho se revolta como nunca antes: sente uma atração incomparável para defender a vida contra um tirano como o sofrimento e contra todas as insinuações desse tirano que gostaria de nos levar a testemunhar contra a vida, a representar a vida justamente diante do tirano. Nesse estado nos defendemos com amargor contra toda espécie de pessimismo, para que este não preço como uma consequência de nosso estado e nos humilhe como vencidos. Nunca a tentação de ser justo nos juízos foi maior que agora, pois agora a justiça é um triunfo sobre nós mesmos e sobre o estado mais irritável que se possa imaginar, um estado que escusaria todo juízo injusto; mas não queremos ser desculpados, queremos mostrar agora mesmo que podemos ficar "sem mancha". Passamos por verdadeiras crises de orgulho.

E agora aponta a primeira aurora de apaziguamento, de cura, é quase o primeiro efeito com que nos defendemos contra a preponderância de nosso orgulho: consideramo-nos então patetas e vaidosos, como se nos tivesse acontecido qualquer coisa de único! Humilhamos sem reconhecimento a altivez todo-poderosa que nos fez suportar a dor e reclamamos com violência um antídoto contra a altivez: procuramos tornar-nos estranhos a nós próprios, despersonaliza-nos, pois a dor nos tornou por muito tempo pessoais com violência.

"Longe de nós essa altivez, exclamamos, ela era uma doença e uma crise forte demais!"

Olhamos novamente os homens e a natureza com um olhar de desejo: lembramo-nos, sorrindo com tristeza, que temos agora a respeito deles certas ideias novas e diferentes daquelas de outrora, que um véu caiu. Mas como nos reconforta rever as luzes temperadas da vida e sair desse dia terrivelmente cru, no qual, quando sofríamos, víamos as coisas e através das coisas. Não nos encolerizamos se a magia da saúde recomeça seu jogo - contemplamos esse espetáculo como se estivéssemos transformados, calmos e cansados ainda. Nesse estado não se pode ouvir música sem chorar.

F. Nietzsche em Aurora

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