Sobre o ineditismo da vida

       Viver é estar em relação com o mundo. Essa afirmação é auto-evidente, pois a vida, como a conhecemos, é definida com base na experiência de seres viventes em constante relação com o mundo. Logo, podemos afirmar que viver consiste em se relacionar com o mundo. Esse "relacionar" não se limita às interações entre seres viventes, mas abrange todo conjunto de experiências sensoriais-cognitivas do ser que vive com esse "mundo". Tente fazer o experimento mental de retirar o mundo de sua frente. O que sobra? Um ser vivente flutuando em um escuro vácuo de ausência de interações com o mundo. Como esse ser saberia se está vivo ou morto se tudo que existe agora é uma imensidão de nada, de não-mundo? Ele poderia muito bem ser levado a concluir, usando a razão, que está simplesmente morto.
       Já que não podemos retirar o mundo de nossa frente, somos obrigados a viver nele. Mas como somos seres humanos, péssimos em instinto e excepcionais em racionalidade (alguns nem tanto, é sabido), chegamos a um mundo já existente e sem saber o que devemos fazer. Não somos biologicamente programados com instintos excepcionais (como o gato por exemplo) para saber o que fazer. Cada passo do homem é consequência de muita deliberação a partir dessa razão própria de "humanos". O homem não nasce sabendo ser homem, ele define o que é ser um ser humano a partir de suas ações. Ações oriundas da própria deliberação do agente homem na tentativa de suprimir seus desconfortos individuais. Até aqui temos o seguinte resumo:

1 - Nascemos em um mundo já pronto;
2 - Não podemos tirá-lo de nossa frente (não em vida);
3 - Viver é se relacionar com o mundo;
4 - Não sabemos o que é ser "humano";
5 -Definimos o que é ser um ser humano a partir de nossas ações humanas;

      Dessas afirmações poderíamos ser levados a concluir que estamos condenados à sermos livres em um mundo que não foi criado por nós, mas já estava "pronto" no momento de nosso nascimento. E que mundo é esse? O que chamamos de mundo? Existe um mundo absoluto, objetivo, verdadeiro, tangível, eterno e resoluto em sua robustez ontológica? Ou o mundo é o produto das interações de objetos materiais com seres viventes? Um sistema em eterna construção? O resultado a cada instante de tempo de todos os encontros de todos os seres viventes da história com uma infinidade de outros mundos que nunca mais serão como foram um dia? O pedacinho das realidades individuais de todos os infindáveis mundos que existem nas mentes de cada um de nós? 
      Porque faço essa provocação? Primeiro pelo prazer em pensar. Segundo, porque acredito que esses questionamentos podem fornecer respostas para importantes aprendizados de "sabedoria de vida". Podemos aqui usar a razão para melhor compreensão de nossas atitudes no intuito de tentar nos manter no caminho mais "inteligente" do ponto de vista de nossas relações com o mundo e consequentemente nossas vidas. Tentar respondê-las é parte do caminho na busca da vida que vale a pena ser vivida. As respostas para esses questionamentos, ou pelo menos a tentativa de elaborá-las, não resolverá os problemas da sua vida, não te levará à felicidade eterna, não te trará a eterna paz de espírito, não te aproximará de nenhum falso ídolo conceitual. Isso simplesmente não existe. Mas talvez essa discussão poderá lhe auxiliar em termos de te dar mais ferramentas para lidar com seus futuros encontros com o mundo, ou em outras palavras: para lidar melhor com a própria vida. E isso pode parecer um pouco prepotente de minha parte, mas pelo menos se aplica à minha vida. Talvez possa se aplicar em algum nível à sua.
       Agora vamos tentar responder essas perguntas levantadas. Se o mundo é esse sistema estático, puro, que existe independente de quem o observa, podemos concluir que a verdade absoluta das coisas é uma possibilidade. E de fato é filosoficamente impossível provar a inexistência dessa "verdade absoluta das coisas". A neurociência já provou que seres vivos possuem diferentes níveis de habilidades sensoriais (o gato sente cheiros que você nunca sentirá) e cognitivas (você pensa coisas que o gato jamais ousará pensar). Logo, se existe uma tal "verdade absoluta das coisas" somos conceitualmente incapazes de enxergá-la. Se conseguimos apenas enxergar comprimentos de onda específicos da luz que todo objeto emana. Se conseguimos ouvir apenas determinada faixa de frequência de sons. Se conseguimos fazer apenas um número limitado de conexões sinápticas a cada instante de tempo. Jamais conseguiremos ouvir todas as as frequências de todos os ecos e ressonâncias de um simples assobio. Nunca enxergaremos as cores associadas à temperatura de cada objeto (como uma simples câmera térmica é capaz de "exnergar"). Jamais pensaremos tudo que pode ser pensado sobre qualquer coisa que exista nesse mundo constante e absoluto.
       Consequentemente, mesmo que tal mundo de verdades absolutas exista, jamais enxergaremos essa verdade. Essa é a conclusão primária da existência de uma verdade absoluta. Mas aqui entra o próximo argumento, que é o mais importante. Essa possível verdade absoluta continua sendo apenas uma possibilidade. Não conseguimos provar que ela não existe e jamais conseguiremos, devido às nossas próprias limitações sensoriais e cognitivas. Mas não conseguir provar que não ela existe também não prova que ela exista. E isso é muito importante. Vamos trabalhar então com a hipótese equiprovável de que não exista uma verdade absoluta. Quais as consequências dessa hipótese?
        Na ausência de um mundo resoluto, que exista além dos nossos sentidos, sem verdades absolutas, sem ideais epistemológicos, estéticos e morais firmes, rígidos e eternos. Sobram infinitos mundos dinâmicos, que a cada instante se apresentam para você de uma forma que nunca se apresentaram antes, absolutamente inéditos em possibilidades, encontros, caminhos e conclusões. Cada pessoa, por ocupar apenas um único espaço de mundo físico em um dado instante de tempo, recebe um conjunto de informações absolutamente único dos sinais enviados pelos objetos desse mundo físico aos seus sentidos. Jamais verei o mundo que você enxerga, pois jamais estarei dentro do seu corpo, vendo pelos seus olhos, ouvindo pelos seus ouvidos, sentindo pela sua pele, pensando pelas suas sinapses, sentindo e processando todas as informações que cada pedaço do mundo físico que lhe cerca (e encontra-se no campo de percepção dos seus sentidos) lhe envia em cada instante de tempo por ti vivido.
       Nesse sentido, cada novo instante de vida (ou encontro com o mundo) é o encontro de um mundo que nunca existiu antes com uma pessoa que nunca existiu antes, pois mesmo o que você "é" também muda a cada instante de tempo por ti vivido. O mundo muda a cada encontro nosso com ele e nós mudamos a cada encontro nosso com o mundo. Como viver é estar em relação com o mundo e o próprio mundo no qual você vive será percebido da forma que você percebe apenas por você, podemos pensar na vida da seguinte forma:

"A vida consiste no conjunto de experiências do ser vivente com um mundo próprio, percebido apenas por ele, mas resultado de milhares de interações de outros seres viventes com seus respectivos mundos. Nossas interações com outros seres vivos consistem nas interações entre os mundos que se formam e as pessoas que deles participam. O fato do nosso mundo não ter sido criado exclusivamente por nós vem acompanhado da surpresa de encontros com coisas que jamais teríamos criado em um mundo só nosso. O mundo no qual vivemos é infinitamente mais rico em possibilidades de experiência do que o mundo que teríamos construído sozinhos. Nesse sentido, viver bem é ter encontros com o mundo que despertam em nós afetos que nos fazem querer repetir esses mesmos encontros. O ineditismo da vida vai te bombardear de coisas horríveis, sobre as quais você não tem nenhum controle. Vai te "presentear" com milhares de encontros entristecedores com o mundo. Mas a cada novo segundo de vida e de mundo, existe sempre a possibilidade de novos e inéditos encontros alegradores com o mesmo. E isso é do caralho!"

FIM!


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