Desconexão

Há dias nos quais sinto um estranhamento de mim mesmo. Uma sensação de distanciamento de minhas próprias sensações. Como se não pertencesse a esse mesmo corpo que experiencia a sensação de não pertencimento e que busca palavras para aplacar esse incômodo situado em algum lugar entre a alma e o sonho. Nesses dias calmos e mortos sinto como se minha vida fosse estranha a mim. E nesse estranhamento sou tomado por uma censura ao próprio ato de buscar a salvação no sonho. Essa desconexão me faz olhar para a possibilidade da felicidade com medo. Schoppenhauer dizia que a vontade é a força motora de um pêndulo de afetos que oscila entre a frustração e o tédio. A frustação por não conseguir se obter o que a vontade deseja e o tédio pela obtenção de algo que um dia desejamos (e que por termos obtido já não queremos mais). Nesses dias estranhos me sinto como se estivesse num estado quântico do pêndulo de Schoppenhauer. Explico: só em estados quânticos duas realidades opostas podem coexistir. E nesses dias de desconexão me sinto frustrado e entediado. Como se tivesse perdido algo que outrora quis e ao mesmo tempo não quisesse nada. Tudo me parece estranho e sem graça. Tento tocar guitarra, mas não consigo sentir nada. Ando pela casa, ouço musica, arranho alguns acordes no piano da sala, penso em meditar. Mas como nada parece aplacar essa morte que se apresenta em vida, decido não fazer nada. E assim só observo esse estranhamento. Tento não me identificar com ele. Tento não me identificar com nada. E então de repente me vem uma frase na cabeça. Uma junção de palavras estimulada pela própria neblina que me esconde de mim mesmo. E essa frase qualquer me faz captar dentro de mim uma nova sensação. Surge então uma vontade repentina, a vontade de escrever. Pego o smartphone que substituiu a tinta e o papel nessa pós modernidade anacrônica ao espírito humano. E sem grandes pretensões começo a escrever. De repente me sinto tão entretido na missão de materializar todos esses afetos confusos na forma de palavras que volto a me perceber. Escrever faz com que eu me sinta novamente. Tento não pensar muito e deixar esse fluxo de fonemas, palavras, frases, ideias, conceitos e sentimentos ganhar forma. O cérebro passa a agir única e exclusivamente a serviço do coração. O texto é a materialização do afeto que utiliza o intelecto como mera ferramenta de fabricação. E nesse fluxo de sentimentos que desperta sinapses e gera o movimento dos dedos que escrevem vou me percebendo. A desconexão vai sumindo conforme o texto vai surgindo. Talvez essa desconexão seja o recurso que a natureza encontrou para subjugar a matéria e fazer com que ela produza coisas. Provocar um desconforto para induzir um movimento. Essa parece ser uma lei maior da natureza que rege a materialidade. Não questiono essa lei, estou subordinado a ela, me entrego a ela, sou ela. E após a conclusão do texto que se originou da desconexão de mim mesmo, sinto que ganhei algo. Aprendi algo ao final desse processo. Não se apegar às sensações e não oferecer resistência ao que elas pretendem manifestar. Saber captar um sentimento no ar e saber deixar ir. É o aprendizado que a observação das minhas próprias sensações (mesmo quando sinto que não são minhas) me trouxe ao fim deste texto que se encerra nesse ponto final.

Comentários

  1. Ah! Se a "Lei" fosse clara! Se Kant tivesse chegado em um formula tão completa como as leis de Newton. Mesmo que depois essa Lei viesse a ser refutada em campos quânticos como as leis do Mestre. Só nos restar seguir, cegos, imaginando que estamos vendo algo além da caverna, uma luz, mesmo que no fundo não saibamos se estamos saindo ou nos perdendo cada vez mais em seus emaranhados túneis.
    Talvez o caminho do meio seja essa Lei. No entanto, por que tão difícil?

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