Berkeley

Prólogo 

John Berkeley era um homem incomum. Desde pequeno carregava consigo a sensação de ser muito diferente da maioria das pessoas que o cercava. Com exceção de seus pais, que sempre incentivaram suas peculiares características, sentia que não pertencia a esse mundo.

Aos 8 anos de idade, enquanto seus colegas estudavam frações e liam histórias infantis, ele estava mais interessado em cálculo diferencial, demonstrações de convergências de séries complexas, física Newtoniana e geometria não Euclidiana. Aos 10, muito antes da atual febre dos drones, Berkeley já havia construído seu próprio veículo aéreo não tripulado com peças de garagem, controlado por um aparelho de rádio-frequência que havia encontrado no porão da casa de seus pais. Enquanto seus colegas de escola soltavam pipa, John brincava com seu drone no quintal da casa de subúrbio, onde morava com seus pais.

John Berkeley era filho de professores universitários aposentados. O pai havia ministrado aulas de filosofia na Universidade de Harvard enquanto a mãe havia sido professora de música na mesma universidade. Ambos eram intelectuais, ateus, e sempre estimularam a curiosidade natural do menino.

Aos 12 anos de idade, em um dia como outro qualquer, John perguntou a seu pai a origem de seu próprio nome. Seu pai aproveitou a oportunidade para dar ao filho uma aula gratuita de filosofia. Ele contou a John que seu nome composto era na verdade uma homenagem ao controverso filósofo irlandês, o pai do imaterialismo: George Berkeley.

Berkeley havia fundado uma escola de pensamento filosófico conhecida como imaterialismo, uma doutrina que pertencia a escola empirista inglesa. O empirismo inglês havia surgido como uma resposta ao racionalismo franco-alemão. Desde o início da filosofia grega, grandes mentes postulavam teorias sobre a forma pela qual podemos confiar naquilo que aprendemos. Seu pai lhe disse que toda filosofia ocidental se baseava em 3 perguntas fundamentais.

As três grandes perguntas da filosofia eram: o que é o conhecimento? o que é o bom? o que é o belo? Dessas três perguntas derivavam-se as três principais linhas de pesquisa filosófica: a epistemologia, a moral e a estética respectivamente. George Berkeley havia feito suas principais afirmações no campo da epistemologia. Enquanto racionalistas, como Descartes e Leibniz argumentavam que a razão era a fonte do conhecimento humano (baseados nos tratados aparentemente herméticos sobre a razão humana de Kant) empiristas, como Locke, Hume e Berkeley, argumentavam que a experiência era a fonte do conhecimento humano. Nesse sentido Berkeley foi além e postulou que o mundo material só existia quando percebido por uma mente. 

"Toda a ordem dos céus e todas as coisas que preenchem a terra - em suma, todos aqueles corpos que compõem a enorme estrutura do mundo - não possuem nenhuma subsistência sem uma mente." 

"Ser é ser percebido"

George Berkeley

Ao ler as citações de Berkeley, John passou a nutrir especial interesse pela filosofia. A partir desse dia leu todos os clássicos, dos pré Socráticos, como Parmênides, cujo princípio da identidade  o lembrava algumas das ideias imaterialistas de Berkeley, e Demócrito, cujo insight sobre a existência do átomo (cerca de 25 séculos antes da comprovação de sua existência pela física moderna) o impressionou, até os modernos Sartre e Nietzsche, passando pelos filósofos helenistas como Platão, Sócrates e Aristóteles, pelos filósofos cristãos como Santo Agostinho e São Tomás de Aquino, pelos racionalistas, como Descartes, Leibinz, Kant e Spinoza e pelos empiristas que originaram as revolucionárias ideias de seu homônimo.

Ao longo de sua adolescência, John foi um garoto de poucos amigos. Tinha muito mais curiosidade em estudar os grandes mistérios da existência e da condição humana do que em sentir as desconfortáveis emoções provenientes do contato humano. Por tudo que observava ao seu redor, a vida dos humanos médios era baseada num protocolo sem graça, previsível e bem definido de normas, padronizações de sonhos com objetivos e medos comuns, códigos morais falhos e obsoletos, oriundos da tradição e incompatíveis com aquilo que John mais estimava em sua própria espécie: a curiosidade e a vontade de ir além, de transcender ao que estava posto. John não se interessava pelo que chamava de modelo "escola-trabalho-família-caixão". Para ele a vida clamava por algo mais.

Aos 16 anos entrou para a Faculdade de Filosofia de Harvard e aos 17 começou seus estudos de Física Teórica no  MIT. Para John a separação entre a filosofia e a física foi um infeliz acidente no percurso civilizatório da humanidade, um efeito colateral nocivo da obsessão Aristotélica em separar os interesses naturais dos seres humanos em caixinhas pré-definidas e rotuladas. Prova disso era o título da grande obra inaugural da física moderna, de Sir Isaac Newton: "Princípios matemáticos da Filosofia Natural". Ao adentrar o mundo acadêmico John sentiu pela primeira vez em sua vida que finalmente pertencia ao próprio ambiente.

A proximidade dos Campi das duas Universidades levou John a morar praticamente dentro do Campus num alojamento estudantil. Ao longo desses 4 anos de vivência universitária John acabou fazendo alguns amigos e certo dia, numa festa de faculdade, foi apresentado a uma erva usada em todo o mundo há séculos: a cannabis. John já sabia que a erva era usada pelos seres humanos como remédio para a consciência há milhares de anos. Como nunca havia sido muito adepto às armadilhas da moral, decidiu experimentar o cigarro de cheiro forte com seus amigos do departamento de filosofia. Ao usar a erva pela primeira vez, lembrou-se de uma frase de um de seus ídolos de infância, Carl Sagan:

"A ilegalidade da cannabis é ultrajante, um impedimento à plena utilização de uma droga que ajuda a produzir a serenidade e discernimento, sensibilidade e companheirismo tão desesperadamente necessários neste mundo cada vez mais louco e perigoso." 


Carl Sagan

Após conhecer os efeitos da erva, John passou a apreciar outra área de fundamental importância no campo da alma humana: a arte! A erva potencializava suas percepções sobre grandes obras da pintura e principalmente da música. Passou a estudar os grandes pintores, dos renascentistas aos pós-modernos, mas seu grande interesse eram os surrealistas. As desconstruções visuais daquilo que se definia como realidade o fascinavam e o faziam lembrar da filosofia de Berkeley. Na música passou a apreciar os grandes clássicos do rock dos anos 1970, com especial interesse pelo Pink Floyd, que John considerava a maior forma de expressão de arte de toda a história da humanidade.

Seus estudos de filosofia, física, matemática e suas experiências de apreciação de arte pelo uso da cannabis o faziam sentir-se como se estivesse integrando as partes do seu próprio ser através daquilo que John chamava da "trindade mais nobre da espécie humana": arte, filosofia e ciência.

Entretanto, mesmo após todos os processos de expansão de consciência e acúmulo de novos conhecimentos, John continuava sentindo um incômodo constante: queria provar a veracidade ou negar as audaciosas afirmações de Berkeley. Após anos de profunda investigação intelectual e sensorial do mundo que o cercava, John continuava intrigado com o fato de que por mais louca que fosse a ideia de Berkeley (a de que o nosso mundo material poderia não existir) ninguém até hoje havia conseguido demonstrar rigorosamente a invalidade dessa hipótese. Será que a raça humana é tão limitada que não consegue nem saber se está ou não vivendo numa Matrix? Lembrava-se constantemente de uma aula logo no início da Faculdade de Filosofia na qual o professor havia dito:

"O alienado por definição não pode saber de sua condição de alienado, pois ao saber, automaticamente deixa de ser um alienado."

A teoria de Berkeley se baseava em cinco definições simples que seguiam um passo a passo argumentativo interessante: 

1 - todas as palavras significantes significam ideias; 
2 - todo nosso conhecimento é sobre nossas ideias; 
3 - todas as ideias vêm de fora ou de dentro; 
4 - se vêm de fora devem-se aos sentidos, e estas são chamadas de sensações, 
5 - se vêm de dentro são apenas operações da mente e passam a ser chamadas de pensamentos. 

John sentia-se incomodado com a possibilidade de que sua vida poderia ser apenas uma programação num código de computador. Quem seria o programador? Será que o "Mundo de Sofia" e a "Matrix" eram metalinguagens da cultura pop a respeito da própria condição humana? Ele sabia que ainda não estava em condições de responder essas questões. Pelo benefício da dúvida decidiu que o que podia fazer era continuar sua coleta de experiências sensoriais na esperança de que sua base de dados interna um dia fosse suficientemente abrangente para que ele pudesse chegar a alguma conclusão a respeito dessa questão.

Um dia, ao andar pelo Campus do MIT, John viu um anúncio nas paredes do departamento de física que lhe chamou atenção:

PROCURAM-SE candidatos para embarcar em uma missão à Marte com o objetivo de colonizar o Planeta. Interessados devem ter boa saúde e conhecimentos em ciências exatas, artes e filosofia para que possam continuar o processo de expansão da cultura humana no novo planeta caso a terra um dia venha a acabar.

Aquele anúncio fez John se sentir estranhamente animado com a possibilidade de sair desse planeta viciado numa moral que ele considerava absolutamente ultrapassada e fundar uma nova colônia de Sapiens diferenciados num planeta inteiramente novo. "Se tudo isso não passar de um jogo de computador, pelo menos que eu expanda os territórios do meu personagem e atinja novos níveis de consciência para esse avatar."

John ligou no número fixado no anúncio e se voluntariou para a missão...

Após meses de intensos testes, John recebeu a aprovação da agência espacial para embarcar nessa nova jornada rumo ao desconhecido. Lembrou-se de uma definição de Nietzsche: "Todo corpo, social ou orgânico, é constituído por um conjunto de forças ativas e reativas. As forças reativas se relacionam ao que está posto. Constituem vontade de poder, fama, prestígio, reconhecimento, dinheiro, etc. Já as forças ativas representam a vida dentro do corpo e estão associadas ao que não existe: à abstração, à criação, às artes, à vontade de potência. Quando as forças ativas estão no comando, as forças reativas se curvam perante sua vontade de potência."

Enquanto caminhava rumo ao desconhecido, John sentia seu corpo inundado por uma vontade de potência nunca antes experienciada. Ele queria sentir algo totalmente novo para poder pensar coisas totalmente novas e se aprofundar em sua investigação do sentido da existência e de seu papel no Universo.

ATO I - SAINDO DA TERRA


Cinco, quatro, três, dois, um...

Enquanto a nave decolava, John Berkeley sentia um forte tremor atravessar seu corpo. Seu sangue descia do cérebro em direção aos micro-vasos sanguíneos do pé em velocidade assustadora. Em meio à iminência de um desmaio, ouviu um forte som de explosão seguido por um silêncio ensurdecedor. Como cientista, John sabia que haviam rompido a barreira do som e que a explosão experienciada nada mais era do que o estrondo sônico. Naquele momento a nave movia-se muito mais rápido do que a velocidade na qual as ondas sonoras geradas na atmosfera pelo seu movimento podiam alcançá-la. Essa transição repentina entre um som muito intenso e um silêncio ensurdecedor levou John diretamente a um modo emocional totalmente novo.



John sentia dentro de si um misto de melancolia e esperança. Geralmente não gostava muito desse sentimento de esperança. Fazia-o lembrar-se constantemente de sua infindável ignorância. O temor e a esperança são dois lados de um mesmo afeto. John entoava esse mantra para si sempre que se via projetando expectativas grandiosas de futuro. A expectativa é a mãe da frustração, era o que a vida tentava lhe ensinar. Mas enquanto a nave decolava rumo ao espaço escuro, John se via esperançoso de que as coisas poderiam ser radicalmente diferentes no novo planeta e essa possibilidade o animava. Ao mesmo tempo sentia a melancolia natural do luto pela perda de uma parte sua que sabia que jamais voltaria. John entendia a melancolia como a morte de uma parte do ser que já não o atendia mais. A experiência lhe mostrara que a vida era composta de ciclos. A sabedoria residia em aceitar o fim de um ciclo, não se apegar ao passado, experienciar o luto pela parte que se ia e aprender a fluir rumo ao próximo ciclo, sem projeções e sem expectativas. 

Enquanto via a terra para trás lembrava-se das grandes obras do final dos anos 60 e início dos anos 70 da carreira de David Bowie, que na época encarnava seu alter-ego Ziggy Stardust, um alienígena, astro do rock decadente, viciado em drogas, que vinha à terra avisar aos Sapiens de seu fim iminente em músicas como "Five years", "Starman" e "Ziggy Stardust". John Berkeley era um homem de muitas paixões e tinha verdadeiro fascínio pela temática espacial de Bowie. Naquele momento sentia seu coração pulsar num ritmo entre "Space oddity" e "Life on mars". O silêncio do espaço sideral apenas estimulava a profusão de sons em sua mente. 

Conforme a nave se despedia da órbita terrestre, John via sua vida em flashes, pensando na aleatoriedade dos eventos que o levaram até ali. Na verdade John sabia que "aleatório" era apenas o nome dado àquilo que nós ainda não possuíamos cognição suficiente para compreender. Muitas coisas que no passado eram tidas como aleatórias, hoje eram explicadas através de fórmulas complexas vislumbradas pela curiosidade que move o progresso científico. Esse pensamento deixou John inquieto. A ideia de uma vida inteiramente explicada por equações que prediziam todos os seus fenômenos fazia-o sentir-se um fantoche nas mãos de um projetista universal e ia de encontro ao racionalismo cartesiano. Para Descartes, se conhecêssemos todas as equações que modelassem o movimento de todos os corpos e suas condições atuais seríamos capazes de prever todo o futuro dos acontecimentos do universo. Não existiria o livre arbítrio e seríamos apenas fantoches respondendo a estímulos eletroquímicos que se traduziam em movimentos e ações. Ao mesmo tempo o próprio desconforto que John sentia ao pensar nessa possibilidade fazia-o mudar de pensamento em direção ao empirismo de Berkeley. Mas a ideia de que a realidade poderia ser uma grande alucinação também o deixava incomodado. 

Ao longo de seus 33 anos, John tinha uma única certeza: sabia que o desconforto que sentia era o combustível de todos os seus movimentos. Além disso, sentia conforto em saber que era naturalmente projetado pela natureza para sentir os desconfortos que sentia. Isso servia para John como uma bússola que o guiava em meio a tantas incertezas. Nos momentos de dificuldade e confusão dizia para si: "Fui programado para sentir desconfortos que não escolho sentir. Esses desconfortos não podem existir apenas para me torturar. Uma inteligência tão grande, responsável pelas leis da física que apenas descobrimos, não iria empreender tamanho esforço só para torturar primatas viciados em smartphones com desconfortos aleatórios. Todo desconforto visa gerar algum tipo de movimento. Deixe que seus desconfortos norteiem suas ações e aprenda com eles. O desconforto é o maior professor que você terá nessa vida."

Repentinamente, John foi ejetado de suas elucubrações filosóficas por um desconforto inteiramente novo. Uma forte sensação de que algo estava na iminência de dar muito errado tomou conta de seu corpo numa descarga eletrizante de adrenalina. Um medo primitivo nunca antes experienciado atingiu Berkeley como um raio.

ATO II - FREQUÊNCIAS ESTRANHAS (TV ALEMÃ)


O despertar do campo da consciência por onde passavam filmes internos de grandes embates filosóficos se deu pela percepção sensorial de pedregulhos atingindo o casco da nave. 



A chuva de meteoros fazia-o lembrar-se do medo que tinha de ser atingido por um raio no meio de uma tempestade quando criança. O medo nunca havia soado "barulhento" para o coração de John. Esse sentimento sempre se manifestava na forma de uma dissonância interna. Uma tensão que se alternava entre momentos de preparação que culminavam numa falsa resolução, tão etérea e impermanente quanto suas próprias certezas. 

Enquanto seus companheiros de jornada tentavam encontrar uma frequência de comunicação com a Terra, John ouvia apenas um idioma vagamente familiar. Aparentemente todas as tentativas de comunicação com o planeta natal resultavam na captura de estranhas frequências do que pareciam canais da TV alemã. Ao que tudo indicava, a nave vagava por uma estranha região do espaço sideral onde essas frequências se concentravam, bloqueando qualquer tentativa de comunicação com a terra.

Em meio a essa espiral de loucura a mente de John foi escurecendo pouco a pouco até apagar completamente em meio a uma risada alucinada, dessas que costumamos dar quando somos atingidos pelo nonsense existencial e então só nos resta rir.





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