O sentir da vida - Parte I

      No início deste mês vivi uma experiência transformadora. Gostaria de deixá-la registrada na forma de texto. Acho que pode ser útil para outros da minha espécie. Na primeira semana desse mês, entre os dias 03 e 05 de setembro, por alguma magia, dessas que o Universo desenha sem a gente perceber, minha vida estaria na rota de uma jornada transformadora da qual eu ainda não fazia ideia. Havia dado aulas muito boas na segunda, terça e na quarta. São nesses dias que minhas aulas estão concentradas neste semestre letivo. Meus alunos mais próximos sabem o quanto dar boas aulas é importante para mim. Eu sempre entro em sala de aula para fazer o melhor que eu puder. Ser 100% presença e entregar aos alunos toda a minha energia vital na construção de um discurso bem encadeado, divertido, empolgante e provocador de sinapses. Sempre querendo ir além das questões técnicas ali expostas. E minhas aulas estão fortemente sujeitas à imprevisibilidade das minhas próprias sinapses. Evito ficar muito preso a um roteiro formal e gosto muito de improvisar com o giz na mão. Acho que isso faz eu me sentir vivo. A possibilidade de errar na frente de uma turma lotada ao invés de me paralisar faz eu me sentir presente. E não tem nada melhor do que estar presente! Por algum motivo (desses que não sei explicar) sentia que as três aulas daquela semana tinham sido incríveis e que eu não poderia ter feito nada de diferente ali para melhorar o discurso que pretendi entregar aos meus alunos. O Universo tinha se encarregado de gerar as condições ideais para coisas interessantes que estavam por vir.

        Chego então em casa na quarta, dia 05 de setembro, cansado do trabalho e com a consciência tranquila por ter dado aulas muito boas na semana. Decidi então fazer algo que faço com bastante frequência por aqui. Tomei meu "cházinho" e fui ouvir música. Há muito tempo não escutava rock and roll bem alto em casa e naquele dia meu coração pedia Ramones. Quem me conhece sabe que minha alma é roqueira. Mas há muito tempo vinha de uma onda de ouvir Bob Marley, Novos Baianos, Jorge Ben, Pink Floyd e outras coisas incríveis e lindas, porém "leves" em termos de agressividade sonora Tinha um bom tempo que não ouvia uma guitarra distorcida no último volume e dançava rock sozinho em casa. Esse era o ritual da minha adolescência: tocar air-guitar, pular, bater cabeça, berrar as letras de frente pra caixa de som no volume máximo com o ouvido colado na caixa e sentir toda aquela energia do rock and roll fluir pelas veias abertas da minha alma roqueira para receber aquela energia pura, juvenil, visceral, sincera, sem moral, sem julgamentos, só coragem, honestidade e rebeldia na forma de música!

      De repente percebo uma sensação diferente no corpo. Um feeling único, intenso, familiar, porém de tempos distantes. A mente tentava explicar a sensação e em sua obsessão por construir uma narrativa concluiu que o Rafael de 33 anos de idade estava me sentindo bem mais jovem. Simples assim. Senti de forma súbita e intensa minha própria juventude invadir meu corpo. Me senti forte, potente, corajoso, num misto de alegria com segurança na própria rebeldia, uma compreensão dos afetos em mim que realmente importavam e uma súbita e total despreocupação com as milhares de coisas que vinham martelando minha cabeça pelos últimos meses. E aqui preciso fazer um parênteses que se dará no próximo parágrafo.

PARÊNTESES   

         No início do ano passado me mudei para Campinas para dar aulas na Unicamp. Larguei minha família e meus amigos em Brasília, cidade onde nasci e morei praticamente minha vida inteira, e vim me aventurar em terras desconhecidas. Nesse processo passei por coisas para os quais não pude me preparar no momento em que decidi partir rumo a essa aventura. Não vou entrar nos detalhes do meu processo psicológico, mas basta dizer que em algum momento me vi na mais absoluta solidão pela qual já passei em minha curta, porém rica, vida. E não me refiro àquele tipo de solidão de ausência de amigos e familiares. A solidão que experienciei foi existencial. Aquela certeza escura no peito de que agora a parada era 100% comigo e que no fundo sempre tinha sido. Que todos os demônios que eu estava enfrentando na minha vida pessoal sempre estiveram dentro de mim e foram eles que me fizeram agir de forma inconsciente durante grande parte da minha vida. Cheguei a renegar a mim mesmo em um dado período da minha estrada por um medo de abandono com o qual tive que lidar da maneira mais dura possível (e até hoje lido). Passei por um ano sem amigos, sem a proximidade de todas as pessoas que eram familiares para mim, sem referências afetivas confiáveis, numa cidade desconhecida, morando numa kit com pouquíssimo espaço, enfrentando uma diminuição drástica do meu nível de conforto e tendo que encarar sozinho uma série de sentimentos pesados que travavam batalhas homéricas dentro da minha consciência enquanto meu ser tentava enxergar alguma luz. Nesse processo percebi que não adiantava sentir dó de mim mesmo e que eu precisava transcender aos próprios valores que havia absorvido da sociedade. Eu precisava ir além, como diria Zaratustra: "Era preciso transcender a si próprio." Ou como Krishnamurti colocou: "Eu precisava rejeitar toda forma de autoridade, inclusive a minha própria autoridade." Concluí que precisava me reconstruir sozinho, pois o pedido de ajuda, que em outros momentos tanto pedi, eram para mim naquela época o caminho de entrada para as sujeiras que foram se condicionando em mim, contaminando meu ser e me levando a navegar pelos recôncavos mais escuros da minha psiquê. Comecei a ler um monte de livro de filosofia, conheci o Yoga, a meditação, compus dezenas de músicas instrumentais sozinho em casa com minhas guitarras e meu teclado, escrevi poemas, travei longos diálogos comigo mesmo, chorei muito sozinho em casa ouvindo Raul (como faço desde os meus 15 anos quando a barra pesa), joguei meu corpo no mundo e me coloquei em situações novas só para ver o que acontecia e poder conhecer um pouquinho mais de mim mesmo. Passei a questionar tudo que eu fazia, pensava e sentia. Tentava entender como a minha experimentação do mundo se encaixava com a dinâmica dos meus próprios afetos. E nesse processo me conheci muito, mas paguei o amargo preço (como tudo na vida) de ter me tornado uma pessoa extremamente mental, pouco presente e com uma mente muito afiada e viciada em problemas para resolver. Passo por uma luta diária até hoje para estar presente. Mas pelo menos conheci várias válvulas de escape no processo e percebi que o sofrimento é capaz de produzir coisas belíssimas!

FIM DO PARÊNTESES

       Aquela sensação no corpo fez eu pensar na minha versão de 16 anos de idade que ouvia rock and roll no quarto e adorava viver! E o primeiro pensamento que tive foi: "Caralho, moro sozinho num lugar massa que é só meu, não tenho esposa, namorada, filho, amante, família que dependa de mim, não tenho cachorro e nenhum bichinho de estimação que more comigo e precise de meus cuidados diários. Não tenho PORRA NENHUMA! Ao mesmo tempo tenho um emprego e sou financeiramente independente. Acho que eu sou a pessoa mais livre deste planeta agora! Caralho! Que sinistro isso!  Massa! Posso fazer o que eu quiser! O que eu quero fazer?" E nesse processo mental eu continuava dançando, gritando rock, batendo cabeça! De repente me vi chorando de alegria por estar vivo e ser livre! E logo que me fiz essa pergunta já me dei a reposta: "Quero ir pra praia!" Meu lado racional, adulto, condicionado, medroso e mental logo começou a colocar mil desculpas para não ir. "Ah, mas é muito caro, você vai gastar muito dinheiro. Não pode fazer as coisas no impulso. Tem que pensar com calma, fazer conta, etc..." Mas a verdade é que o Universo é mágico e naquele dia os Ramones continuavam tocando rock e gritando nos meus ouvidos com aquela rebeldia linda e pura da juventude: "I don't wan't YOU! I DON'T WAAAAAN'T YOU! ANYMORE!!!" E aquilo falou muito mais forte com os meus afetos do que o conjunto de pensamentos amedrontados, castrados, amordaçados, condicionados, assustados, tão típicos de todos os adultos respeitáveis da sociedade tecnocrata sem coração em que vivemos. Pensei então: "Se eu morrer em um mês não é justo que eu morra com essa vontade de ir pra praia!" Quero que se foda! Vou fazer aquilo que minha versão de 16 anos teria dito para eu fazer. Vou deixar meu melhor lado orgulhoso de mim mesmo e FODA-SE." Em meia hora entrei na internet, comprei passagens aéreas, reservei hotel e aluguei um carro. No dia seguinte embarquei às 23h (06 de setembro) com meu violão para Maceió, numa jornada rumo ao desconhecido. Só pensava o tempo inteiro: "Caralho, que massa! To indo pro Nordeste sozinho com meu violão curtir praia do jeito que eu quiser e foda-se!"  

       Após comprar tudo comecei a chorar de felicidade e percebi que existia em mim um lado que só queria saber do meu bem estar, de me ver feliz mesmo. Uma coisa simples e pouco construída pela mente racional treinada pelos outros. Na hora chamei esse meu lado de Deus e falei com Ele: "A vida é uma parada do caralho! Foda demais, Deus! Mandou bem pra caralho por ter pensado nessa porra! Já nascemos com tudo pronto, certinho, perfeito, caímos num filme meio pronto que começa a nos distrair com as coisas mais irrelevantes do mundo para nos afastarmos de nós mesmos. E quando o sofrimento nos quebra temos então a oportunidade de viver a aventura de fazer nossa jornada de volta para casa e perceber que tudo sempre esteve lindo e certo dentro da gente! Que roteiro foda de filme, Deus! Muito massa!".

         Claro que isso era a minha mente humana antropomorfizando a sensação do contato íntimo com a minha própria essência que eu havia chamado de Deus, pois já era algo perfeito que não precisava de ajuste, plano de correção ou adequação. Deus não era algo fora de mim ou além de mim. Era eu mesmo. O meu melhor lado. O lado original, aquele que só quer saber de brincar e se divertir. O lado não-mental, ainda não viciado em problemas para resolver. E nessa percepção passei o dia seguinte totalmente encantado com a vida, andando de maneira leve, chorando de alegria por estar vivo e em contato íntimo e constante comigo mesmo. Tudo isso antes de embarcar para Maceió. 

       Às 20h da noite comecei minha jornada rumo à praia. Fui dirigindo para o aeroporto de Viracopos ouvindo Bob Marley, dançando e cantando. Chego no aeroporto com meus fones de ouvido nada discretos, ainda ouvindo o velho Bob, carregando meu violão nas costas e dançando feito um "louco" no aeroporto. E nessa alegria senti vontade de interagir com todas as pessoas que cruzavam meu caminho. Sentei para comer uma pizza ainda antes do embarque e um gringo pede para sentar na minha mesa. Acho que as mesas próximas deviam estar cheias. Dou um sorriso, tiro meus fones de ouvido e digo: "É claro! Senta aí. Você é de onde?" Ao perceber que ele não falava português mando meu inglês destreinado e começo a puxar papo. Conversamos por uns 20 minutos sobre tudo. O gringo estava aqui a trabalho, super estressado, passando por várias cidades para representar a empresa em que trabalhava e que vendia máquinas para o agronegócio. Descobri que ele estava com saudades de casa, que gostava de cozinhar, que achava a gastronomia uma forma de arte, definimos filosoficamente o conceito de arte, ouvi ele dizer que tinha adorado a comida Brasileira e que um dia gostaria de voltar ao Brasil só pelo turismo. Convenci-o de que a vida era uma aventura e de que ele podia aproveitar essa oportunidade para se divertir no Brasil agora mesmo, ir nos botecos e tomar todas no fim do dia de trabalho. Rimos um monte sobre algumas bobagens e sobre o nonsense da existência e seguimos caminhos separados. Continuei dançando até Maceió. 

       Pouso no litoral às 2h da manhã e vou pegar meu carro na locadora. Após enfrentar uma fila demorada com muito bom humor e ser só sorrisos para a moça que trabalhava na empresa de aluguel de carros, tenho a primeira experiência reflexiva não programada da viagem. A moça me diz que precisa tirar uma foto para os registros de locação.  No que ela aponta sua tekpix para o meu rosto já saco logo o meu melhor sorriso retratando a alegria por estar vivendo uma aventura na companhia do meu violão e do meu melhor lado. Ela corta o meu barato e diz em tom robótico: "Preciso que o senhor seja sério." Eu não me aguentei e até tentei falar: "Mas eu to sério, moça..." Mas era mentira, eu não estava nada sério, então não consigo falar isso sério. Caio na gargalhada com o nonsense daquela situação. Porque aquela mulher precisava que eu fosse sério? Eu não queria ser sério! Foi a seriedade que estragou tudo de mais precioso que eu sempre tive nessa vida. Eu tive que perder tudo que era importante para mim por conta dessa seriedade idiota que os outros escolheram para mim. Eu não sou sério, nunca fui. Rio de piada de pinto até hoje com meus brother como se eu tivesse 13 anos de idade. Mas esses pensamentos não abalaram meu bom humor. Muito pelo contrário, só serviram para fortalecer o sentimento leve e gostoso que carregava dentro de mim. Apenas deram um novo motivo pra minha criança interior gargalhar e rir de tudo isso. Pensei: "Que legal essa interação! Mais um aprendizado e uma boa história para contar!"

       Pego meu carro e coloco no GPS o endereço do hotel. Não fazia a menor ideia da distância ao aeroporto e só estava a fim de viver a aventura, sem estresse, intenção, projeção ou expectativa. O pensamento dominante ao longo de toda a viagem era: "Vamos ver aonde isso vai dar..." Ao longo do caminho para o hotel vou observando um cenário totalmente novo para mim e depois de mais de uma hora de direção, tendo me perdido algumas vezes no caminho, chego finalmente ao meu "destino". Por coincidência um casal estava fazendo check-in no mesmo horário. Pensei: "Quais as chances de pessoas de núcleos diferentes estarem fazendo check-in nesse hotel no meio do nada às 4h da manhã?" A hóspede recém chegada olha para mim e diz: "Você é aquele cara que veio dançando do aeroporto de Viracopos até aqui?" Dou uma boa risada e digo: "Sou eu mesmo. Dançar é bom para caralho. Aeroportos são lugares muito sérios. Todo mundo deveria dançar em aeroportos!" Ela concorda comigo e vou para o meu quarto feliz, sorrindo e dançando com meus fones de ouvido. O incrível Bob Marley ainda animava minha jornada. Super cansado, mas feliz, tomo um banho e vou dormir às 5h da manhã. 

         Acordo na sexta, dia 07 de setembro, às 9h30 da manhã e vou tomar meu café. Quando cheguei na madrugada anterior tudo estava escuro. Ainda não fazia a menor ideia de onde havia me metido. Não tinha visto o lugar ainda. Quando chego no restaurante para comer algo (já pensando na praia que iria pegar) vejo o paraíso em que tinha me enfiado e volto a chorar de alegria por ter me colocado ali. Agradeço a mim mesmo novamente, chamando esse mim mesmo de Deus. E no meio daquela magia percebo um visitante inusitado atrás de mim: um miquinho acompanhava atento meu café da manhã no paraíso. Segue foto que comprova esse momento lindo!


        Após esse mágico café da manhã pego minhas coisas e vou para a praia. Estava com o corpo ainda cansado da jornada e decidi explorar a praia mais próxima do hotel. Chego numa praia linda, sento numa barraquinha, olho para o mar e agradeço a mim mesmo por ter me colocado naquele lugar. Claro que esse "Eu" era o meu melhor "Eu", o "Eu" que queria me ver feliz, dançando Bob, cantando, tomando sol e nadando no mar. Não conseguia não chamar esse "Eu" de "Deus". Para mim era cada vez mais clara a ideia de que Deus é só o nome da nossa melhor parte, não no sentido moral, mas no sentido da parte que deseja profundamente apenas nosso próprio bem-estar. E com esse sentimento de plenitude entro no mar. Assim que a primeira onda toca meus pés desabo em prantos e choro de forma convulsiva enquanto adentro o vasto e lindo oceano a minha frente. Estava imerso não em pensamentos, mas num sentimento de profunda conexão comigo, uma sensação de unificação de pedaços de uma pessoa voltando a se tornar uma pessoa inteira. Choro um choro infantil, de soluçar e não parar mais, sentindo uma felicidade profunda por estar vivo. Me agradeço e me amo mil vezes naquele momento. Choro por saber que estava ali me curando, cuidando de mim, sendo gentil com a minha criança que havia sido tão maltratada por tanto tempo. E fico ali brincando com as ondas por um tempo que não me dei o trabalho de contar. Furava ondas, ria, pegava jacarés, fazia força para aguentar as pancadas das ondas mais fortes sem sair do lugar, me divertia e ria sozinho enquanto interagia com o mar.

       Aí sair do mar meu corpo pedia Yoga e comecei a fazer meus Ásanas de maneira intuitiva, não planejada, natural, seguindo o fluxo natural do corpo. Após uma hora de prática decidi meditar. Sentei em pose de meditação na beira do mar, ciente dos possíveis encontros que meu corpo inerte pela prática poderia ter com a imprevisibilidade das ondas e vendo nessa imprevisibilidade uma oportunidade de sentir as leis do cosmos e observar o fluxo da minha consciência nessa alternância entre corpo e mente. Mal sabia que estava prestes a experienciar a vivência mais transformadora que tive até hoje com a meditação. Fecho meus olhos e observo o fluxo dos meus pensamentos, decido não lutar contra a mente e deixar vir, tento só observar. Mas pela singularidade daquela minha jornada a mente estava mais calma que o habitual. Acho que ela tinha percebido que naquele momento não teria problemas para resolver, então ela decidiu ficar um pouco mais quieta. Começo então a sentir o corpo. Noto o calor dos raios de sol bombardeando meu corpo, sinto o vento da brisa oceânica que acaricia a superfície da minha pele, percebo o quebrar das ondas no meu joelho, apenas sinto a delícia de possuir um corpo, ter saúde e estar vivo. De repente começo a sair da superfície do corpo e passo a sentir algo mais subjetivo, um conforto psicológico que não está mais associado ao campo dos sentidos, mas que passa a ser percebido no campo dos afetos. Uma sensação de comunhão com o Cosmos, uma integração com as leis da natureza, uma ausência de bordas entre Eu e tudo aquilo que me cercava, um sentimento de pertencimento ao vento, ao sol, ao som dos pássaros, aos afetos das pessoas que passavam por mim em suas caminhadas pela areia, uma ausência de fragmentação. E essa percepção me veio na forma de leveza e conforto. Não me senti sozinho. Estava ali comigo! A mente, através do apego, viu nessa sensação uma possibilidade de tentar entender o que eu sentia e como havia chegado nesse estado de consciência para poder reproduzi-lo no futuro. Decidi não lutar contra a minha mente. Não queria dar muita energia a ela e num gesto de delicadeza comigo mesmo disse para minha mente: "Divirta-se! Construa a sua narrativa se isso te apetece! Vou parar de lutar contra você. Eu te aceito porque você faz parte de mim. E quando construir sua narrativa compartilha ela comigo para que eu possa tentar aprender alguma coisa com você." A mente ouviu o ser e teorizou esse contato que eu havia experienciado com o Observador em mim como a possibilidade de que nós talvez sejamos constituídos por três partes: corpo, mente e consciência. A teoria que minha mente formulou no momento foi a seguinte. 

       1 - O corpo consiste neste receptáculo mecânico ambulante, equipado com sensores e que faz a conexão entre o mundo físico e o mundo interior através dos sentidos. O corpo por limitações físicas só é capaz de estar no presente, mas carrega em si emoções de todas as experiências do passado. Todos os nossos traumas psicológicos geram reflexos involuntários que se manifestam no corpo na forma de dores, tensões no pescoço, agitações, palpitações, etc. As práticas de Ásanas do Yoga destravam algumas dessas emoções presas no corpo e fazem com que elas fluam de acordo com o caminho natural da energia vital dentro da gente. Com isso ela tira as prisões do passado pelo corpo e assenta as atividades da mente. Na hora o primeiro Sutra de Patanjali me veio à mente: "O Yoga consiste no assentamento das atividades da mente". E imediatamente lembro de uma querida amiga que certa vez me disse: "O corpo é nossa âncora com o presente!" Essas ideias se conectavam em minha mente e percebi que estava ali construindo pela minha vivência o Meu Yoga!

      2 - Mas além do corpo temos o nosso mundo interior. Este se divide em duas partes: a mente e a consciência. A mente é parte integrante do corpo. Seu quartel general fica dentro da caixa craniana. A mente é apenas uma ferramenta desenvolvida através de um processo evolutivo com a finalidade de manter o corpo vivo. Essa ferramenta pensa em soluções para atender as demandas que chegam do corpo a todo instante: fome, sede, vontade de reproduzir, vontade de correr, explorar, olhar, entender, modificar o ambiente, etc. Mas é só isso que ela é: uma ferramenta. Quando nascemos somos seres pouco mentais. Nossas mentes ainda estão se formando e se desenvolvendo e no entanto é na infância quando nos sentimos mais vivos, mais presentes. Porque será? Neurocientistas especulam que não nos lembramos conscientemente dos primeiros 3 anos de vida porque nessa época a mente ainda não se formou e nosso ser não julga ser importante formar uma base de dados, pois a presença em si já é suficiente. Não existe necessidade de memória quando se É pura presença! A memória é o apego à experiência e o início da desconexão com o presente. A própria estrutura de funcionamento da mente permite que ela habite tempos diferentes dos tempos do corpo. A mente para antever potenciais perigos ao corpo está sempre usando a base de dados do passado (na forma de memórias) e fazendo simulações mentais de potenciais cenários futuros (na forma de projeções) para tentar resolver problemas que ainda não existem e que na verdade são criados pela própria mente para evitar a repetição de experiências dolorosas.

     3 - Mas a mente não é tudo que existe. Na meditação senti algo fora do campo mental, totalmente no campo dos afetos e essa sensação chamei de consciência. Poderia ter escolhido outro nome, mas consciência me pareceu fazer sentido. A consciência é o campo dos afetos puros no Ser original, antes de se tornar fragmento na forma de um indivíduo que agora tem um corpo físico único e que portanto só pode existir nesse plano na condição de fragmento. A consciência é a nossa programação natural que não precisa de narrativas racionais para saber o que sente. É o sentir que não precisa de um corpo e nem de uma mente que o valide. A imagem mental que me veio para descrever a "consciência" foi a de um tecido flutuando pelo Cosmos ao sabor das leis do Universo: sem norte, sem sul, sem leste ou oeste, sem referência, sem passado e nem futuro, sem a finitude do corpo e portanto sem a necessidade da mente, sem o apego ao transitório, mas sem a estacionariedade que amedronta o homem que teme a morte. A consciência para mim era um movimento não intencional, não deliberado na forma de pura fluidez. Motivado por um vídeo que havia assistido do Osho, pensei:

"Se o tempo existe, ele só pode ser o recurso de um processo de construção. Deus não criou o mundo e foi descansar. Se ele tivesse feito isso o mundo já estaria pronto, pois se um ser perfeito cria algo então a criação está pronta. O simples fato do tempo existir como pano de fundo da possibilidade de transformações indica que a construção ainda está sendo feita e Deus é a própria construção se construindo. Não há porque temer aquilo que é. Todo medo vem do apego de um desejo por parte da mente do que deveria ser."

        E após essa enxurrada de percepções que tive na companhia de mim mesmo na praia decidi passar o resto do meu primeiro dia de praia dançando, cantando, rindo, chorando, comendo e sentindo o sol.

        Nessa altura da viagem minha taça já estava transbordando e senti vontade de derramar meu amor e compartilhar esses insights com algumas pessoas. Mandei alguns áudios de Whatsapp de 10 minutos para amigos próximos falando sobre tudo que tinha acabado de sentir na meditação e sobre as minhas teorias de corpo, mente, consciência, Deus e o sentido da vida. Meu lado professoral precisava ensinar, compartilhar, construir, disseminar. Espalhei todo meu amor na forma desses áudios com algumas pessoas queridas e voltei para o Hotel para descansar um pouco e tocar violão.

Mal sabia que as maiores lições da viagem ainda estavam por vir...

FIM DA PARTE 1

Comentários

  1. Respostas
    1. Gratidão, irmão! Estou escrevendo a parte II da experiência. Devo postar em breve! Obrigado pela sua visita no meu blog!

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  2. Como a vida é engraçada. Estava eu, neste sábado dia 27/7/2019, à toa. Deu uma saudade de fluidos 2. Resolvi procurar as notas de aula do Prof Gabler e na busca deparo-me com esse texto sensacional de cunho filosofal, ideológico sei lá... Deixarei fluidos 2 pra um outro dia. Vou ouvir um Raul e buscar a mim mesmo.

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  3. Em uma busca aleatória cai de paraquedas neste blog e me deparo com este texto 👏🏽👏🏽👏🏽

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  4. Que conteúdo professor..., eu no meio dessa quarentena tenho me alimentando com seu conteúdo e sobretudo com uma gratidão imensa de simplesmente eu ser eu, lindo texto e linda experiência, obrigado por compartilhar

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