Por que é tão difícil ser coerente?

       Tenho pensado bastante sobre coerência. Acredito que exista uma questão fundamental da psicologia do homem em torno desse tema. Quando pensamos seriamente no conceito de vida nos deparamos com uma diversidade enorme de formas, tamanhos, funções biológicas, estruturas comuns, padrões de comportamento e níveis de consciência. Costumamos colocar a espécie humana no topo da nossa escala de complexidade nas questões da consciência e talvez essa seja mesmo uma escala apropriada. 
        O fato do homem ser provavelmente a espécie mais despreparada entre todas do reino animal no que tange às questões do instinto e ainda assim ter sido capaz de modificar o mundo da forma como modificamos é um ponto determinante nesse "ranqueamento"  da consciência dos tipos de vida que observamos em nosso planeta. Ainda assim sofremos coisas que só nós humanos sofremos. Criamos monstros psicológicos que só nós criamos. Coletivizamos nossas dores para dissipar no universo tudo aquilo que não compreendemos sobre nós mesmos. Todo tipo de sofrimento tipicamente humano se enraiza em nós a partir do instante em que nascemos: a noção da própria consciência, o medo da morte, da solidão, do abandono, a culpa pelo estado psicológico do outro, ciúmes, medo do futuro (não aquele instintivo de curtíssimo prazo que aumenta os níveis de adrenalina para que presa fuja do predador e garanta a proliferação dos genes), desconexão com o presente, arrependimento pelo passado e a lista continua. 
        O homem nasce como uma folha em branco, despreparado em instinto e excelente na identificação de padrões de cronologia e estabelecimento de relações de causa e consequência. Essas são propriedades da razão humana, não podemos fugir de sermos bons nisso. Essa é a ferramenta da qual nos utilizamos para compensar nossos fracos instintos. E costuma funcionar bem para as questões práticas do dia a dia. Mas o uso da razão humana da forma como utilizamos não resolve as questões psicológicas do homem, por isso o medo da morte, da solidão, do abandono, a culpa e demais variantes nos perseguem. 
        Pensando profundamente sobre esse problema cheguei em conclusões interessantes. A primeira delas é a de que a estrutura da mente humana é absurdamente complexa e envolve várias camadas. A primeira camada, a mais superficial de todas, é a que 99% das pessoas usa o tempo inteiro e de forma tão indiscriminada que chegam a confundir o que são (o próprio ser) com essa camada superficial de consciência. Essa primeira camada serve para analisar rapidamente os fenômenos do mundo da vida e é uma excelente ferramenta para dar respostas rápidas e práticas. É a camada do cotidiano. O problema é que por ser muito rápida, não consegue filtrar várias coisas que passam despercebidas e evoluem para se transformar em grandes monstros psicológicos: estou falando de todos os condicionamentos que não percebemos, os mesmos que disparam pensamentos automáticos em situações do dia a dia (conhecidos na terapia cognitivo comportamental como gatilhos). Esses pensamentos automáticos nos levam a emoções inesperadas e geralmente muito desconfortáveis. Isso tudo sem percebermos, pois estamos muito focados apenas na primeira camada superficial da própria consciência. Isso seria o que os mestres yogues chamam de "viver em ilusão", sem consciência dos próprios pensamentos.
         E o que isso tudo tem a ver com coerência? Se você mergulhar nas camadas mais profundas do seu ser, sem julgar, condenar, evitar ou fugir de nenhum questionamento sobre o que sente e pensa, não lutando contra, mas apenas observando seus pensamentos e reações (objetivo da meditação) vai notar que grande parte dos seus sofrimentos vem de uma não consciência de incoerências internas que te fazem sofrer. Essas incoerências são resultado de muito condicionamento despercebido que passou no raso filtro da primeira camada de consciência (a mente do cotidiano). Por isso um dos mandamentos máximos da yoga é a busca por essa coerência, pois é a única forma do ser humano de se libertar do próprio sofrimento. A dificuldade disso é que o mundo moderno te sufoca e te obriga a usar indiscriminadamente apenas essa primeira camada de consciência. Assim, a segurança desarmada e desatenta do ser acaba deixando um monte de condicionamentos passarem direto, pois a mente está muito ocupada pagando boletos ou fazendo contas. Raul Seixas resume bem o que quero falar quando diz: "Dois problemas se misturam: a verdade do universo e a prestação que vai vencer..."

FIM

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